Lições de Organização Judicial (Coimbra, 1899)

Affonso Costa

CAPITULO II

Ministerio publico

98. Representação da sociedade junto do organismo judiciario. Necessidade, origem e evolução do ministerio publico. — Sendo os particulares independentes na maneira de fazer valer os seus direitos e não podendo, em regra, os tribunaes administrar justiça espontaneamente, é indispensavel que um organismo especial, representante do interesse collectivo, possa submetter a decisão dos magistrados o que respeita á sociedade em geral.
Quer se tracte dos bens que constituem o patrimonio da sociedade inteira, quer seja preciso manter a ordem publica ameaçada ou lesada por crimes mais ou menos graves, quer perturbações menos serias desarranjem a sociedade, quer ella queira prestar o seu apoio seguro áquelles cuja fraqueza reclama uma protecção especial, quer emfim os estabelecimentos publicos pertencentes á sociedade estejam compromettidos, — é do interesse e do dever da sociedade não ficar espectadora indifferente: póde e deve constituir-se parte, e vigiar pela manutenção e pela applicação das leis. Tal é a razão logica d’essa magistratura nova, conhecida nas instituições de muitos paizes sob o nome de ministerio publico. (¹)
Qual será a origem d’esta magistratura? Alguns auctores, percorrendo a historia do direito romano, suppozeram encontrar os primeiros vestigios do ministerio publico nos rationales ou procuratores caesaris, estabelecidos no tempo de AUGUSTO.
É, porém, certo que esses funccionarios eram incumbidos de representar o principe no seus dominios, recebendo os rendimentos, repellindo as usurpações e compellindo os tributarios negligentes. Mais tarde CONSTANTINO attribuiu-lhes o direito de julgar as causas fiscaes. Mas, nem uma nem outra funcção tinha similitude com as attribuições criminaes, fiscaes, orphanologicas, civis e de administração judicial, que em todos os povos se conferem aos agentes do ministerio publico junto dos tribunaes de justiça.
Outros escriptores pretendem sustentar que a primitiva origem do ministerio publico se encontra nos defensores civilatum — funccionarios municipaes encarregados de punir os crimes e os delictos, de denunciar os culpados e de os trazer a juizo. Eram nomeados por uma assembleia composta do bispo, curiaes, proprietarios e principaes habitantes: as suas attribuições, eram preventivas e judiciaes, e duravam 5 annos, como se vê em MERLIN, Repertoire de jurisprudence, vol. II, v.º Ministère public.
Mas tal opinião é ainda menos defensavel que a primeira. Quando muito, e despresando já a limitação de jurisdicção dos defensores civitatum, poder-se-hia apenas encontrar, n’esta instituição, o germen da actual policia, complicada com uma jurisdicção pouco propria.
Por seu lado, DALLOZ em França e MARTENS FERRÃO entre nós, julgam encontrar o germen do ministerio publico na antiga Grecia e especialmente na legislação de Athenas. Existiam ahi uns magistrados, cuja intervenção era necessaria ao tractar-se de perseguir crimes publicos commettidos contra as pessoas, quando os criminosos estivessem impunes, quando a victima não tivesse parentes que sollicitassem a condemnação, ou emfim quando estes fossem pouco cuidadosos na perseguição do criminoso.
Esta opinião tem mais valor que as precendentes, mas não é segura. Affigura-se-nos pouco exacto reconhecer como inicio d’uma instituição um systema de funcções que apenas apresentam com as d’aquella uma similitude apparente, e, por assim dizer, só exterior.

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(¹) Conf. o proj. do José Antonio Guerreiro, apresentado ás côrtes em 7 de janeiro de 1828.