Políticas de Droga, Democracia e Direitos Humanos no Brasil

Rubens R. R. Casara(1)
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Neste artigo é analisada a política criminal de combate ao tráfico e consumo de drogas no Brasil e em particular a Lei n.º 11343/2006..

No Brasil, país periférico e de capitalismo tardio, no qual as promessas da Modernidade(2) até o momento não se concretizaram,. a partir da chamada “revolução tecnológica”(3), que reduziu a importância do trabalhador no processo de produção de bens e acumulação do capital(4), na mesma medida em que aumentou o contingente de desempregados(5), duas foram as principais estratégias para evitar o conflito(6), manter as estruturas sociais — marcadas pela desigualdade — e administrar o medo(7) gerado tanto pelo conflito quanto pelo agravamento das tensões resultantes do quadro de desigualdade social e desamparo: de um lado, as políticas assistencialistas e compensatórias(8), que receberam forte incremento nos últimos anos; de outro, o controle social através do poder penal.
Em relação ao controle social através do poder penal, estratégia antiga(9), porém ainda funcional, não é difícil perceber que tanto a criminalização primária quanto a criminalização secundária, ou seja, tanto a seleção das condutas que serão objeto de atenção do direito […]

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(1) Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, membro da Associação Juízes para a Democracia – Brasil, vice-presidente do Fórum Permanente de Direitos Humanos da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, doutorando em direito pela UNESA, mestre em ciências penais pela UCAM/ICC, professor de processo penal do IBMEC/RJ, professor convidado do programa de pós-graduação da UCAM e professor convidado da pós-graduação do CESEC.
(2) Ao se adotar a Revolução Francesa como marco da Modernidade, pode-se apontar o ideário de liberdade, igualdade e fraternidade como a principal promessa do projeto revolucionário. No Brasil, a liberdade sempre esteve condicionada ao poder econômico do indivíduo: a pessoa é livre para ser/fazer tudo aquilo – e somente aquilo – que a sua capacidade econômica permite. A idéia de igualdade, outro mito burguês, nunca foi valorizada em uma sociedade de classes fortemente demarcadas, patriarcal e patrimonialista (caracterizada pela confusão entre o público e o privado). Por fim, o sentido de fraternidade parece nunca ter sido bem compreendido: não se respeita o “outro”, o diferente. Parcela considerável da sociedade adquiriu uma invisibilidade social que só é superada no momento em que ela, o “outro”, protagoniza um ato de violência.
(3) Processo que se iniciou após a II Guerra Mundial para culminar em um impressionante domínio técnico-científico sobre a natureza e o homem. Paradoxalmente, a incorporação de novas técnicas, de novas formas de organização do trabalho, de fontes de energia e matérias- -primas sintéticas não representou a humanização do trabalho. Ao contrário, em razão da tecnologia, o trabalho perdeu o valor de venda. Como percebe Marildo Menegat, “o trabalhador, como força produtiva, vai sendo substituído por supervisores que operam o aparato técnico” (MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 90). Ao aumento da produção não correspondeu uma melhora na vida do trabalhador, ao desemprego estrutural somou-se a desconstrução territorial das linhas de produção e, no caso brasileiro, o desmonte da incipiente indústria nacional.
(4) “O capital apenas pode se reproduzir produzindo um crescente aumento de destruição” (MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 11).
(5) No Brasil, o volume destes cidadãos desempregados se tornou tão grande, que eles deixaram de constituir um ‘exército de reserva’ para o trabalho. São pessoas que perderam a utilidade para a sociedade de consumo, que não têm poder de consumo, os “consumidores falhos” a que se refere Zigmunt Bauman.
(6) Não se desconhece que o conflito é inerente à vida em sociedade e, não raro, é positivo. Porém, o conflito potencializa-se e pode levar à barbárie em quadros de profunda desigualdade social como o vivenciado na sociedade brasileira.
(7) Sobre a utilização político-criminal do medo na cidade do Rio de Janeiro: BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
(8) Como principais exemplos de políticas públicas assistencialistas/compensatórias têm- -se os projetos “bolsa família” e “bolsa escola”, nos quais a pobreza (que se reconhece como uma dívida social) e a manutenção de filhos na escola são compensadas com ajuda financeira do Estado.
(9) Ao longo da história, a repressão penal foi utilizada para a formação de um exército de mão-de-obra (Sobre o tema: RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002), para a formação de exércitos nacionais (no Brasil, a prisão e “condenação” ao serviço militar foi responsável pela fabricação de muitos dos soldados que participaram da Guerra do Paraguai, 1864/1870), como reforço às políticas sanitárias (no Brasil, tornou-se famoso o episódio conhecido como a “Revolta da Vacina”, em 1904) ou reformas urbanas (no auge da ditadura militar, o Governo Federal criou um órgão chamado Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio, que tinha como objetivo principal acabar com todas as favelas da cidade num prazo máximo de dez anos. De 1968 até 1975, cerca de 100 comunidades foram destruídas e mais de 150 mil pessoas removidas ) e, em especial, para a contenção do perigo representado, antes, pelo proletariado, em razão de seu potencial revolucionário, e, atualmente, pelo grupo social excluído das políticas sociais e sem poder de consumo.