A responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas e a responsabilidade civil por dano ecológico: sobreposição ou complementaridade? *

Carla Amado Gomes
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

SUMÁRIO: 0. Apresentação e sequência 1. O sentido da “responsabilidade administrativa” do Cap. III do DL 147/2008, de 29 de Julho 2. A responsabilidade da Administração por dano ecológico por facto ilícito 2.1. Por facto comissivo 2.2. Por facto omissivo 3. A responsabilidade da Administração por dano ecológico pelo risco 4. A sentença condenatória da Administração na reparação do dano ecológico: causa legítima de inexecução e proporcionalidade

0. Apresentação e sequência

O ano de 2008 foi “ano grande” em tema de responsabilidade civil das entidades públicas. Em Janeiro entrou em vigor a Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas (=RRCEE), e em Agosto foi finalmente transposta a directiva 2004/35/CE, de 21 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, através do DL 147/2008, de 29 de Julho (Regime de prevenção e reparação do dano ecológico = RPRDE), que autonomiza o conceito de “dano ecológico” e estabelece um regime específico para a sua reparação. Os diplomas têm objectivos bem caracterizados e claramente díspares[1]. No entanto, a designação do Cap. III do RPRDE “Responsabilidade administrativa” é equívoca e lança dúvidas sobre a articulação entre o regime que corporiza e o RRCEE.
Nas linhas que se seguem, a nossa primeira preocupação será esclarecer que as disposições do RPRDE não consomem de modo algum o regime do RRCEE no domínio da comissão de danos ecológicos por entidades públicas não há sobreposição, antes complementaridade (1.). Uma vez esclarecida esta premissa, passaremos em revista as modalidades de responsabilidade em que as entidades públicas podem incorrer, entrecruzando-as com o regime do RPRDE (no que se aplique): responsabilidade por facto ilícito, comissivo e omissivo (2.), e responsabilidade pelo risco (3.). Dedicaremos ainda algumas considerações finais ao problema da execução de sentença condenatória de pedido indemnizatório de dano ecológico perpetrado pela Administração, em virtude da sua especial posição no processo e do reflexo do princípio da proporcionalidade neste momento-chave de execução do RPRDE (4.).
Antes de prosseguir, deixamos uma observação, algo a latere – e por isso a fazemos neste ponto introdutório. O RRCEE alude, na sua norma de fecho, à Indemnização pelo sacrifício (artigo 16º). Trata-se, como é sabido, de situações de compensação de cidadãos anormal e especialmente lesados em bens próprios em favor da colectividade, em homenagem a uma declinação do princípio da igualdade: princípio de justa repartição dos encargos públicos. Naturalmente que estas hipóteses são frontalmente antagónicas […]

[1] Sobre o RRCEE, vejam-se os nossos Textos dispersos sobre o Direito da responsabilidade civil das entidades públicas, Lisboa, 2010, pp. 83 segs (e bibliografia aí citada); sobre o RPRDE, vejam-se os nossos A responsabilidade civil por dano ecológico: reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL 147/2008, de 29 de Julho, in O que há de novo no Direito do Ambiente?, Actas das Jornadas de Direito do Ambiente, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 15 de Outubro de 2008, org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, Lisboa, 2009, pp. 235 segs), e De que falamos quando falamos de dano ambiental? Direito, mentiras e crítica, in Actas do Colóquio A responsabilidade civil por dano ambiental, que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa nos dias 18, 19 e 20 de Novembro de 2009, e-book disponível no site http://www.icjp.pt/publicacoes, org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, Lisboa, 2010, pp. 153 segs (bem assim como todos os outros textos incluídos na publicação).