A revogação de actos administrativos entre o Direito nacional e a jurisprudência da União Europeia: um instituto a dois tempos?*

Carla Amado Gomes
Profª Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Profª Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Rui Tavares Lanceiro
Assistente convidado e doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Assessor do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional

SUMÁRIO: 0. Considerações iniciais; 1. O(s) tempo(s) da revogação
no Direito nacional; 2. Revogação administrativa e anulação contenciosa: a) prazo de revogação de actos bilaterais e poligonais desfavoráveis; b) efeitos do acto inválido para além do decurso do prazo de estabilização; c) revogabilidade de actos inválidos bilaterais favoráveis para além do decurso do prazo de estabilização;
3. Nulidade, tempo e revogação; 4. O tempo da revogação no Direito da União Europeia; 5. O dever de revogação de acto administrativo consolidado no âmbito dos auxílios de Estado; 6. O dever de reexame de acto administrativo consolidado: i) da perspectiva do TJ; ii) da perspectiva nacional; 7. A desconsideração do prazo de consolidação do acto

0. O Direito, enquanto fenómeno de regulação social, não é imune ao tempo – ao contrário, é retrato fiel das opções políticas, do sentir social, da evolução técnicocientífica[1]. Dentro do tempo longo dos ciclos sociais, todavia, o Direito tem uma vocação de

estabilização das relações humanas que vai ao encontro da necessidade de salvaguarda de expectativas que as populações almejam[2]. As pessoas são seres de hábitos, necessitam do conforto da previsibilidade para ter paz interior; as sociedades são entes de tradições, anseiam pela continuidade de instituições e normas, cimento da paz social.

No Direito Administrativo, a temática do tempo surge intensamente relacionada com o problema da revogação dos actos administrativos, aí se concretizando paradigmaticamente a tensão permanente entre a vertente dinâmica e objectiva da prossecução do interesse público e a vertente fixa e subjectiva da estabilidade da situação jurídica. No entanto, a revogação enquanto acto secundário visando a cessação, parcial ou total, de efeitos de uma decisão anterior (no âmbito da mesma competência) pode recair sobre actos e regulamentos e mesmo sobre contratos administrativos, embora aí sob a designação de resolução (vejamse os artigos 330º/c), e 333º a 335º do Código dos Contratos Públicos [=CCP]). Todas estas expressões da actividade administrativa são susceptíveis de alteração, por razões de estrita legalidade, de oportunidade, de incumprimento (no caso dos contratos) e de alteração das circunstâncias, obedecendo a sua revogação a pressupostos específicos, orgânicos, formais, materiais e temporais.

O tema da revogação é, em rigor, de direito substantivo; todavia, a ligação umbilical do Direito Administrativo ao Direito do Contencioso Administrativo, por um lado, e o facto de a actividade administrativa estar sob a vigilância dos tribunais, por outro lado, faz com que não possamos ignorar, nestas reflexões breves, algumas normas do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (=CPTA). Muito concretamente, é inescapável a articulação entre prazo de revogação por motivos de invalidade e prazo de interposição da acção impugnatória, afigurandose pouco coerente que a Administração mantenha a competência revogatória anulatória para além do prazo em que é possível aos interessados sindicar a validade nas instâncias jurisdicionais (salvo havendo processo em curso).

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(*) Uma versão inicial deste texto foi utilizada como suporte da intervenção da primeira autora no V Encontro de Professores portugueses de Direito Público, subordinado ao tema Tempo e Direito Público, que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa nos dias 27 e 28 de Janeiro de 2012.

A versão actual é resultado de uma feliz associação entre a Doutora Carla Amado Gomes e o Dr. Rui Tavares Lanceiro, doutorando da FDUL, que tem vindo a trabalhar a matéria na perspectiva do Direito Administrativo Europeu e cuja contribuição o desenvolveu e melhorou. O diálogo académico estabelecido foi totalmente aberto, ao ponto de se verificar uma dissensão entre os dois co-autores, no ponto 6., devidamente assinalada.

(1) Sobre a tensão entre perenidade e adaptabilidade do Direito, vejase os contributos reunidos na obra colectiva coordenada por François Ost e Mark Van Hoecke, Temps et Droit. Le Droit atil pour vocation durer?, Bruxelas, 1998.

(2) Cfr. desde logo o Cap. III do subtítulo III do Título II do Livro I do Código Civil, dedicado a O tempo e sua repercussão nas relações jurídicas.