As sentenças absolutórias, o recurso e o provimento condenatório na Relação – um itinerário com alguns equívocos

 


Joaquim Correia Gomes
Juiz Desembargador no Tribunal da Relação do Porto

I. – O estado da questão II. – As funções dos recursos 1. – A razão de ser 2. – A função endoprocessual 3. – A função extraprocessual III. – O direito ao recurso e o segundo grau de jurisdição 1 – O princípio da instância única 2. – O princípio da proibição do duplo risco 3. – O direito ao recurso no PIDCP 3.1. O art. 14.º, n.º 5 do PIDCP 3.2 – As Decisões da CDH 4. – O direito ao recurso na CEDH 4.1. – O art. 2.º do Protocolo Adicional n.º 7 da Convenção 4.2 – A jurisprudência do TEDH IV. – O direito ao recurso e as garantias constitucionais 1 – O sistema de recurso para as Relações. 2 – A jurisprudência constitucional portuguesa V. – As sentenças absolutórias 1. – A dissenção entre o PIDCP e a CEDH 2. – A “Legge Pecorella” e o princípio de um justo processo 3. – O direito a um processo equitativo nos recursos VI. – Conclusões.

O presente estudo analisa o direito ao recurso na sequência de uma sentença absolutória proferida em 1.ª instância, cujo provimento do reexame da matéria de facto na Relação conduz a uma declaração de culpabilidade do arguido enquanto recorrido e à sua subsequente condenação numa reacção penal, que deve, em regra, ser decretada pelo tribunal de recurso, desde que este assegure o direito a um processo equitativo.

I. O ESTADO DA QUESTÃO

Os recursos correspondem a um meio processual mediante o qual se submete a uma reapreciação jurisdicional o “thema decidendi” de uma anterior resolução judicial, procedendo-se à correcção ou revisão desta.
Daí que os recursos despoletem uma nova fase judicial decisória em relação a uma fase judicial pretérita, em virtude de uma das partes ter manifestado uma pretensão impugnatória dirigida à primeira resolução judicial.
Esta fase recursiva tanto pode ser concebida como uma fase complementar da inicial, como uma fase praticamente independente da primitiva( 1).
No entanto e como decorre do disposto no art. 412.º do Código de Processo Penal(2), os poderes de cognição do tribunal de recurso encontram-se limitados ao pedido impugnativo e às suas conclusões, decorrendo daquele normativo um autêntico ónus de impugnação recursiva.
A única excepção a este autêntico princípio dispositivo corresponde àquelas questões que, mesmo em sede de recurso, são do conhecimento oficioso para o tribunal superior.
Por isso o objecto do recurso é sempre dirigido à decisão impugnada, partindo-se da mesma matéria de facto e de direito, ainda que com carácter excepcional possa proceder-se à renovação da prova.
Assim e como é tradição no nosso sistema processual penal a concepção legal de recurso desenhada pelo actual Código de Processo Penal, corresponde a uma visão limitada do recurso, surgindo como uma autêntica “revisio prioris instantiae”.
Esta asserção, por assim dizer jurisprudencialmente tautológica, tem sido totalmente assimilada pelo Supremo Tribunal de Justiça, mormente quando se pretende a alteração do julgamento da matéria de facto, seja por existência de erro notório na apreciação da prova [410.º, n.º 2, al. c) C. P. P.], seja mediante o seu reexame impugnativo [412.º, n.º 3 C. P. P.].[…]