(o casamento entre pessoas do mesmo sexo)
Vera Lúcia Raposo
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Advogada
Pretende o presente estudo apresentar alguns dados e reflexões acerca da legitimidade constitucional das soluções possíveis para conferir cobertura jurídica às uniões entre homossexuais, tendo como objectivo último indagar da legitimidade constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
1. DIREITO A CONSTITUIR FAMÍLIA
O direito a constituir família é tão co-natural à espécie humana que não há proclamação de direitos humanos a nível internacional(1), ou de direitos fundamentais no plano interno, que o não consagre. Isto porque, para além da sua importância para o indivíduo singular, destaca-se igualmente o seu papel como “célula fundamental da sociedade” (prin- cípio 16 do Pacto Social Europeu).
Este direito pode ser concebido como um direito-mãe, cluster-right ou background right(2), na medida em que lhe cabe o papel de densificador de um leque de outros variados direitos nele incluídos: o direito à reprodução, o direito ao estabelecimento de laços jurídicos de filiação com a prole que nos está geneticamente vinculada, o direito a adoptar e a ser adoptado, o direito a casar, o direito a viver em união factual, entre muitas outras formas de constituir família.
1.2. Direito ao casamento e direito a constituir família
É hoje consensual que o direito a constituir família não coincide com o direito ao casamento. Uma interpretação contrária levaria a concluir que – pelo menos enquanto esteja vedado o casamento entre pessoas do mesmo sexo – apenas poderão existir famílias heterossexuais, o que de todo contradiz a situação fáctica que hoje se vive um pouco por todo o lado, Portugal inclusive, e que cada vez mais goza de maior aceitação social.
Alguns textos constitucionais ligam tão umbilicalmente a família ao casamento que parecem não admitir outra família que não seja a de fonte matrimonial (art. 29.º/1 da Constituição italiana). Outros, em contrapartida, autonomizam ambos os institutos, muito embora seja inegável o vínculo que os trespassa.
O art. 36.º/1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) insere- -se na segunda categoria que acima referimos, mediante a consagração autónoma do direito ao casamento, por um lado; do direito a fundar família, por outro lado. Quando o texto da norma utiliza o binómio “constituir família e contrair casamento”, claramente os cinde em duas figuras jurídicas distintas, sem sequer determinar qualquer ordem de precedência de uma em relação à outra, ou sem elevar o casamento a requisito de uma posterior constituição da família(3). […]
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(1) O direito a fundar família está reconhecido no art. 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH); no art. 23.º/1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP); no art. 1.º do Pacto Internacional dos Direitos, Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC); no art. 12.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH); no art. 17.º da Convenção Americana de Direitos Huma- nos; no art. 29.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. Sobre a consagração internacional deste direito Cristina CAMPIGLIO, Procreazione Assistita e Famiglia nel Diritto Internazionale, CEDAM, Padova, 2003, p. 63 ss.
(2) Utilizamos aqui esta expressão na acepção que lhe dá Jónatas MACHADO, Liberdade de Expressão – Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, Studia Iuridica, 65, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 372.
(3) J. J. Gomes CANOTILHO, Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.º edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 561 ss.