Vera Lúcia Raposo
vera@fd.uc.pt • vlr@vda.pt
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra/Centro de Direito Biomédico
Advogada
Os actuais debates parlamentares acerca das directivas antecipadas de vontade (DAV’s) (re)acordaram-nos para um problema que desde há muito despertava a nossa atenção, mas sobre o qual raramente tivemos oportunidade de escrever[1].
Para melhor situar a questão vimo-nos na contingência de tratar da problemática mais geral das decisões em fim de vida, nomeadamente da eutanásia e da respectiva avaliação criminal. Porém, esta é uma abordagem necessariamente superficial, apenas destinada a fornecer as linhas gerais da questão. O nosso objectivo não é investigar as várias possíveis formas de eutanásia e práticas paralelas e sua perspectivação criminal à luz dos tipos de crime contra a vida, mas sim apresentar a nossa visão da autonomia pessoal, especialmente da autonomia nas decisões em fim de vida, e muito particularmente quando essas decisões são plasmadas num documento prévio destinado a valer em situações de incapacidade futura. Ao longo da nossa reflexão abordamos várias temáticas conexas. Desde logo, a já referida eutanásia, mas também o sentido do acto médico, o consentimento para actos médicos, o encarniçamento terapêutico, entre outros pontos que nos parecem essenciais para contextualizar a questão e a solução que lhe pretendemos dar. Nenhum destes pontos (que por si só daria corpo a um estudo autónomo) conheceu uma investigação exaustiva. Mas cremos que a descrição que deles se faz é suficiente para apresentar uma posição juridicamente fundada sobre as DAV’s. 1. Os casos que despoletaram a situação 1.1. O caso Karen Ann Quinlan Em Abril de 1975, Karen Ann Quinlan, de 21 anos de idade, por razões nunca totalmente conhecidas, deixou de ventilar durante dois longos períodos de tempo. Em consequência desses períodos de apneia sofreu lesões cerebrais irreversíveis, ficando em estado vegetativo persistente. A ausência de funções cognitivas privou-a de qualquer tipo de relação exterior e tornou-a dependente de suporte ventilatório, o que levou o pai de Karen a pedir ao médico para suspender o suporte de vida e permitir que a filha morresse. Frustrado com a recusa do médico em suspender o suporte de vida, sob a alegação de que se tal viesse a acontecer seria considerado homicídio, o Sr. Quinlan recorreu aos tribunais e pediu para ser nomeado tutor da sua filha de forma a poder legalmente representá-la. Após ser reconhecido como tutor invocou o direito de Karen à privacidade e à integridade física para interromper o suporte de vida.[…] |
[1] Mas vide Vera Lúcia RAPOSO; “O Direito à Vida…”, p. 59/87. |