Page 28 - Revista do Ministério Público Nº 156
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Ressocializar, hoje? Entre o «mito» e a realidade André Lamas Leite
um processo contínuo que se inicia logo com a cominação penal e com a determinação sancionatória, mas que encontra na execu- ção da reacção a sua fase essencial[73]. Logo em 1977, aquele Tribu- nal definia a ressocialização[74] como a «reintegração do agente na comunidade»[75], retirando-se directamente da Grundgesetz (GG: Constituição Federal alemã) uma obrigação de a execução da pena se orientar para esse fim primordial. Mais ainda, «do prisma cons- titucional, esta exigência corresponde ao próprio entendimento do que é uma comunidade, a qual coloca a dignidade humana no centro do seu sistema axiológico e está comprometida com o prin- cípio do Estado social»[76]. Do mesmo passo se salienta que o con- denado não pode ser objecto de uma simples sanção estatal que o obrigue à ressocialização, devendo ela ser encarada como prestação
[73] Klaus Lüderssen, Il declino del Diritto Penale, Milano: Giuffrè, 2005, pp. 11-12. Mais ainda, o autor vem cha- mando a atenção para a necessidade de o condenado ganhar skills à medida de todo o processo descrito em texto e de se apostar nas capacidades comunicacio- nais do mesmo, no que nos ressoa uma influência habermasiana (ibidem, pp. 27-28). Sublinha ainda o cariz eman- cipatório de todo o processo (ibidem, p. 50).
[74] Tudo indica que o termo terá sido usado pela primeira vez na Alemanha, num opúsculo intitulado «Gegen die Freiheitsstrafe» (1918), da autoria de von Karl Liebknecht, e mais tarde retomado por von Hans Ell- ger no artigo «Der Erziehungszweck im Strafvollzug» (1922), com análise dos resultados obtidos pelas ciências empíricas sobre as consequências sociais negativas e a estigmatização daqueles que eram privados de liberdade (Natalie Andrea Leyen-
decker, (Re-)Sozialisierung und Ver- fassungsrecht, p. 50).
[75] BVerfGE 35, 202, 235, ss.: «die Wiedereingliederung des Straftäters in die Gesellschaft». No mesmo aresto se afirma a proibição constitucional de degradar o condenado ao papel de um «objecto», o que comporta inegáveis consequências práticas na execução da pena de prisão, as quais começam a ser claras a partir das décadas de Cinquenta e Sessenta do séc. XX, na Alemanha, discutindo-se os limites a traçar numa inegável limitação da «esfera íntima» que sempre ocorre em «instituições totais» como a prisão. Também por essa altura, o mandato hoje consagrado de que nenhum condenado pode ser (re)integrado socialmente contra a sua vontade, exactamente por via do respeito dessa eminente dignidade da pessoa, começa a fazer o seu caminho — cf. Heinz Müller-Dietz, Menschenwürde und Strafvollzug, Berlin, New York: Wal-
ter de Gruyter, 1994, pp. 9 e 27-29. Na síntese deste autor, a execução das penas privativas de liberdade passa pela garantia da protecção e do cuidado que o Estado deve ao condenado na sua vida diária, pela luta contra a formação da «subcultura» carcerária e, por fim, a Drittwirkung des Freiheitsentzugs, i. e., a necessidade de se obviar, na medida do possível, os efeitos negativos da sanção sobre a família e amigos do condenado, o que importa uma obrigação activa do Estado quando o condenado finda o cumprimento da pena, de o auxiliar na sua reintegração (ibidem, pp. 32-34).
[76] «Verfassungsrechtlich entspricht diese Forderung dem Selbstverständ- nis einer Gemeinschaft, die die Mens- chenwürde in den Mittelpunkt ihrer Wertordnung stellt und dem Sozials- taatsprinzip verpflichtet ist.» (BVerfGE 98, 169, 200, ss.). Mais se referia aos perigos do contacto do condenado com a subcultura da prisão (do encarcera- mento) — Subkultur des Prisonisierung.