Page 41 - Revista do Ministério Público Nº 58
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seus matizes, mesmo contra a lei, em suma.
A história é pouco mais do que o registo dos crimes, das loucuras, das desgraças da humanidade, dizia
Gibbon, e a história da modernidade poderia ser contada também como história das violações da
legalidade em nome da law and order por parte dos diversos sectores dos establishments.
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2. O poder dos sem poder
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O que não aconteceu por acaso. A legalidade aplicada coerente e sistematicamente é, na realidade, um ççêáçóãó
bem material por excelência para os sem poder. Irrenunciável e talvez até o mais precioso. Como prova, áããçêó
uma sumria descrição fenomenológica. Onde a criminalidade organizada impera e infiltra com homens óã
seus o aparelho de Estado e se entrelaça com um poder político, financeiro e empresarial conivente, a çãí
restaurao da legalidade significa na realidade o resgate de uma situação de escravatura e radical
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negao de dignidade, onde só havia a «escolha» entre a humilhação da submissão absoluta à lógica das í
cosche (*) ou a precipitação no heroísmo insensato de uma quotidianeidade hobbesiana. Mas sem chegar çóã
a tanto: cada benefício para os corruptos e os prevaricadores é uma privação, uma exploração dos sem éíê
poder. Desde o doente tratado como estorvo ou como cobaia, ao marginalizado que no polícia não ãçãà
encontra segurana, antes uma ameaça mais, ao arguido (inocente até prova em contrário) que defronta óêçã
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no magistrado um lotfago dos seus direitos, à vítima sem «padrinhos» que no juiz acomodatício ou çã
rotineiro descobre o instrumento de denegação de justiça, ao trabalhador a quem o empresário impõe, com
o cmplice fechar de olhos das instituições, pactos leoninos, ou recusa o cumprimento das normas de ãà
segurana e dos contratos, ao cidadão que vê destruído, pela arrogância da especulação e pela ççãéá
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complacncia das autoridades, o património monumental e ambiental que também é seu, ao automobilista çê
que respeita o cdigo e que prejudicado e escarnecido pelo polícia de trânsito que deixa impunes ã
condutas violadoras da lei, ao empresário que nunca o virá a ser, apesar de uma vocação e qualidades í
weberianas, porque no se mostra disposto a pagar administradores desleais, banqueiros complacentes e éá
funcionrios colocados na bolsa que não controlam. Por trás de cada um destes comportamentos efectiva-
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se uma materialssima injustia e um dano para os sem poder. Em contrapartida, com a repressão de tais ããã
comportamentos e a restaurao da legalidade ocorre um enriquecimento real dos mesmos sem poder. éí
Repetindo e insistindo: a legalidade o poder dos sem poder, visto que constitui a única forma real da ç
autonomia de cada um, em substituio daquela autonomia para alguns poucos, ligada à riqueza ã
(relativamente mdia) e que obviamente não é universalizável. O que significa, note-se, que a
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universalizao da autonomia depende de um duplo processo: o enriquecimento de cada um, assegurado áê
pela fruio da legalidade e pela co-diviso do poder (co-dividido no duplo sentido que exponho no ensaio
«Il disincanto tradito», em Micromega, 2/1986), mas também a esterilização do poder da riqueza nos
aspectos civil e poltico. Aqui se enuncia, irresistvel e iniludível, a conexão - que não desenvolverei mas à
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que deve ser enunciada e tida em ateno - entre a legalidade e igualdade de oportunidades, esta última
como lgica ampliao e at corolrio da primeira, que está porventura destinada a degradar-se e ç
desagregar-se sempre que no for exercida como instrumento de activa aproximação à segunda.
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Mas no s. Sem rigorosa legalidade tambm se desvanece e adorna farsa o consenso eleitoral, que seria
subtrado ao imperativo «um homem, um voto». A aplicao da lei não pode tornar-se numa aposta no
conflito entre os concorrentes polticos sem com isso o distorcer e desfigurar irremediavelmente. O ã
consenso refere-se escolha da lei, mas no deve ter nenhuma influência na sua aplicação (ou âã
desaplicao). Se se tornasse realmente (como muitas vezes se tornou) na devastadora Grundnorm do éí
ordenamento, na busca do consenso seriam favorecidos precisamente os governantes pouco propensos à é
legalidade, prontos a promulgar leis draconianas, mas maneira de editais manzonianos (**), decididos
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assim a fazer da sua no aplicao uma moeda de troca com o voto, e reforçando desta forma o sistema
da conivncia e da omert (***) no interior das fibras do mais profundo tecido social. É nesta
disponibilidade para colocar o consenso antes da legalidade, e em troca desta, que consiste a raiz da áé
passagem do «mero» mau governo, mesmo o mais ramificado, ao verdadeiro e autêntico regime.
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No o consenso, por isso, a primeira condio da democracia. No , portanto, o consenciente, mas sim á
o dissidente, a figura irrenuncivel da vida democrtica. O consenso um princpio decisivo, mas segundo, é
porque s vale no horizonte de uma legalidade rigorosa. E que reclama, contemporânea e
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inseparavelmente, por isso, reconhecimento do dissidente e intolerncia para com quem viola a lei, tanto ú
maior quanto maior for o seu poder. A legalidade, portanto, no se identifica em absoluto com o
conformismo e no exclui completamente a desobedincia civil. Pelo contrrio. Esta ltima constitui a
homenagem mais autntica que o dissenso presta legalidade, visto que, contra uma lei que reputa
injusta, a desobedincia civil exige uma nova lei para a respeitar, e por ela arrisca abertamente a
represso, na convico de que, para a conscincia da maioria, a velha lei j escandalosamente ã
retrgada, e at ultrajante, daqueles princpios que, levado o indivduo a srio, devero ser garantidos
constitucionalmente. A desobedincia civil, portanto, pode ser um autntico instrumento da legalidade
contra a lei concreta que desconhece os pressupostos de igualdade sem os quais a legalidade no pode
ser solidamente argumentada.
Cairia no ridculo a objeco de quem quisesse sustentar que, chamando a esquerda a fazer da legalidade
o seu prprio sextante, se limita a invocar o monstrum de uma esquerda que assuma os valores da direita.

