Page 10 - REvista do Ministério Público Nº 74
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Revista:
No 74 - 2o trimestre de 1998
Autor:
António Cluny
(Procurador-Geral Adjunto)
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Capítulo:
áEstudos
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Título:
Justiça e Democracia
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Pgina:
27
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Justia e Democracia
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Para falar de Justiça e Democracia importa, antes do mais, definir qual o sentido em que se vai usar uma e çãá
outra expresso. ãã
Por Justia entender-se-á, aqui, não a virtude, o valor ou princípio por que se deve reger e orientar a ã
conduta e o relacionamento individual e institucional, mas o aparelho de normas constitucionais e õçã
estatutrias que do corpo ao «poder judicial», que a Constituição da República Portuguesa abarca sob a á
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designao de Tribunais, neles integrando ambas as magistraturas.
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Ser pois a esse conceito institucional de Justiça que se fará referência na abordagem do tema que foi úáí
proposto. íáó
Por Democracia, por outro lado, tomar-se-á por boa a definição de Lincoln, no seu discurso de Gettysburg
em 1863: «Democracia o poder do povo, pelo povo e para o povo» e o conceito juspublicista de regime ã
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democrtico, como aquele em que o poder político é exercido através de mecanismos de representação de
base eleitoral, com respeito pelo princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei e pelas suas liberdades à
e garantias ( 1 ).
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Creio, alis, que estas duas definiões, uma de natureza política e programática e outra de carácter éáççç
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jurdico e institucional, encontram total acolhimento e desenvolvimento no artigo 1o, no artigo 2o e no artigo é
3o da Constituio da Repblica Portuguesa. úà
Por Justia entenderemos, assim, o conjunto de órgãos do Estado de direito democrático que integram o ó
«poder judicial» e por Democracia o mtodo de adopção das decisões colectivas de governo, em que é
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garantida a participao directa ou indirecta dos cidadãos e assegurada, também, a sua genérica õ
vinculao s decises tomadas. Isto , o nico regime político em que é possível conceber a Justiça como é
um poder autnomo e independente e em que garantido o respeito por todos os cidadãos e órgãos do
Estado pelos interesses definidos e protegidos no pacto fundador, consubstanciado na Constituição e nas ççã
leis constitucionalmente vlidas.
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, alis, por isso que Agustn Squella pode dizer:
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«Na presena de um regime democrtico de governo... a mencionada heteronomia do direito, se bem que
no desaparea, atenua-se consideravelmente, desde o momento em que os cidadãos, continuando sem
produzir directamente as normas do direito, confiam esta produção a determinados órgãos ou poderes em ã
cuja gnese lhes cabe, a sim, uma directa participao». ( 2 )
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Propomo-nos, assim, abordar as relaes que hoje se estabelecem entre a Justiça, como a definimos, e a ç
Democracia, quer enquanto complexo de rgos de poder que mutuamente se controlam, quer enquanto ãõ
processo de formao da vontade poltica traduzida em normas do direito; ou seja, enquanto estado de
direito democrtico e constitucional.
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, pois, na perspectiva das naturais contradies que o desenvolvimento da vida política, económica e
social necessariamente acarreta, mesmo no relacionamento interactivo dos diversos órgãos do poder do ã
regime democrtico, neles se incluindo o judicial, que iremos aqui abordar alguns problemas que hoje mais à
preocupam a sociedade.
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Como dizia o Presidente Mrio Soares no discurso de abertura do ano judicial de 1995: «As democracias
modernas, nas sociedades mediatizadas do nosso tempo, no se baseiam s na representatividade dos
parlamentos e dos outros rgos de soberania, eleitos por sufrgio directo e universal, e nos órgãos de
poder derivado, legitimados na eleio indirecta, na transitoriedade de funes e no controlo político
democrtico. Baseiam-se tambm, significativamente, na importncia decisiva dada ao direito, postulando
a subordinao de todo o poder poltico Constituio, encarada no apenas como quadro referencial da
organizao e das relaes dos diversos poderes do Estado, mas tambm como verdadeira garantia, com
fora normativa, dos direitos e liberdades dos cidados». ( 3 )
Com efeito, esta fora de congregao das modernas constituies que vai permitir ao poder judicial e ã
aos seus rgos uma maior interveno, agora mais evidentemente poltica, no contexto da acção global
dos restantes rgos do Estado.
que estas constituies interpretam o conceito de igualdade dos cidados perante a lei, no apenas
como um instrumento formal de tratamento imparcial dos conflitos inter-subjectivos, assegurado pelo
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Estado rbitro, mas j como um conjunto de meios jurdicos programados equidade, de que o Estado
dispe e deve fazer uso, conducentes a concretizar uma real igualdade de oportunidades dos cidados,
com condies naturais e sociais, partida, efectivamente distintas.
Neste sentido, no pretende o moderno estado de direito constitucional e social dar corpo a uma mera e

