Page 26 - Revista do Ministério Oúblico Nº 85
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 Kant defendeu a relação culpa/pena como o único programa válido de uma comunidade juridicamente organizada, onde a justiça constitui um valor fundador e agregador permanente. Daí a sua teoria retributiva da pena. Nessa perspectiva, a retribuição e, no plano processual, a perseguição de todos os crimes, apresenta-se como um princípio de salvaguarda da dignidade humana e não um instrumento de tirania. Porém, essa teoria retributiva, pelo seu carácter absoluto, ignora completamente outros valores, igualmente pertinentes à dignidade humana, ligados aos fins preventivos das penas. Pois se nenhuma pena pode ser aplicada na ausência de culpa do agente, também é hoje reconhecido que seria uma violência, seria uma injustiça , aplicar uma pena desnecessária . O princípio da (estrita) necessidade das penas, cuja formulação precisa devemos a Beccaria, mas que comporta variadas consequências, subprincípios ou corolários (nos quais podemos incluir o princípio da ofensividade e inclusivamente o moderno princípio da primazia das penas não detentivas ) representa não um utilitarismo oportunista, mas uma consideração de respeito pela dignidade humana.
O princípio da culpa, ligado ao fim retributivo, e o princípio da necessidade das penas, relacionado com os fins preventivos, conciliam-se e completam-se. Este reduz as consequências daquele, limita-o, mas não em nome de considerações ou de valores diferentes, mas sim do mesmo valor fundamental - o da dignidade humana.
5. Um programa criminal fundado no princípio da necessidade das penas, combinado com o princípio da culpa, tem desde logo consequências ao nível da definição dos crimes, ou seja, a nível substantivo. Consequências redutoras, de descriminalização . A nível da parte especial do Código Penal, relativamente à definição concreta dos crimes; mas também da parte geral desse diploma, quanto à definição das penas e ao critério da sua escolha, em que assume relevo o primado das penas não detentivas.
Insistindo: a questão não é de natureza substantiva, pelo que não podem privilegiar-se soluções em sede processual, entre optar por perseguir ou não perseguir uma infracção punível. Definida uma conduta como infracção penal, daí decorre naturalmente a obrigatoriedade da sua perseguição, sob pena de subversão do programa político-criminal. O processo, pelo seu carácter instrumental (ele é o «braço executivo» do direito penal), não pode frustrar as imposições do direito substantivo. Doutra forma, haveria inclusivamente o perigo de violação do princípio democrático da divisão de poderes, já que a definição de crimes cabe ao poder legislativo e a sua perseguição ficaria na disponibilidade do poder judicial (ou do poder executivo, eventualmente). Por isso, o princípio da legalidade, ou melhor, a perseguição de todos os crimes não pode deixar de ser a regra .
Contudo, sabemos que a aplicação da lei (geral e abstracta) ao caso concreto é sempre problemática e daí que possam admitir-se excepções a essa regra, mas precisamente com vista à execução do programa político-criminal e não em sua contradição, e desde que cumpridos certos pressupostos objectivamente enunciados, para evitar a violação do princípio da igualdade.
É neste sentido que são de admitir soluções de oportunidade e de consenso, de diversão, que recebem protecção do princípio da necessidade das penas e dos seus corolários, entre eles o do primado das penas não detentivas.
Mas já é de rejeitar a possibilidade de fixação de directivas de política criminal, estabelecendo prioridades de investigação, não só por violação do princípio da divisão de poderes (a não ser que tais directivas sejam definidas pelo órgão legislativo), como sobretudo porque assim se ilude o problema fundamental, o da sobrecriminalização, e se degrada a lei penal, que é (deve ser) uma referência fundamental do ordenamento jurídico, numa lei débil (uma soft law ).
6. Aqui chegados, podemos tirar as seguintes conclusões:
A) A necessidade de combater os bloqueamentos da justiça penal passa antes de mais pela descriminalização (simples, conversão de crimes públicos em semi-públicos, ou conversão em ilícito penal administrativo), em obediência a um programa de subsidiariedade (intervenção mínima) do direito penal.
B) O princípio da legalidade da acção penal é o único que se coaduna com um programa político-criminal fundado nos princípios da culpa e da estrita necessidade das penas e com a divisão constitucional de poderes.
C) O princípio da legalidade admite, porém, no domínio da pequena e média criminalidade, em homenagem ao princípio da necessidade das penas e seus corolários, mormente ao princípio da primazia das penas não detentivas, algumas limitações ou derrogações, no sentido de abertura a soluções de consenso e oportunidade, desde que fixados objectivamente os pressupostos da sua aplicação, de forma a reduzir a possibilidade de violação do princípio da igualdade perante a lei, mas nunca com o mero objectivo de produtividade e eficiência.
7. Por último, poderá perguntar-se: alguma reforma, algumas medidas serão de tomar em Portugal?
Creio que sim. E quer no âmbito penal, quer no processual. Poderei sintetizá-las assim, numa aproximação provisória:
 





















































































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