Page 75 - Revista do Ministério Oúblico Nº 85
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 IV - Direito aplicável
1. A questão que vem submetida à apreciação deste tribunal reveste dois aspectos cujo exame esgota o objecto do agravo.
Primeiro aspecto, de legalidade, que consiste em saber se a recusa em se apresentar a exame é legítima, atenta a justificação invocada pelo réu.
De outro modo dito: se tem, ou não o dever de cooperação com a justiça, enquanto parte no processo, atentas as causas concretas (factos) que invoca.
Segundo aspecto, de constitucionalidade, que consiste em saber se, perante a recusa, é lícito fazê-lo apresentar sob custódia à efectivação do exame, no Instituto de Medicina Legal.
2. Antecipando a conclusão, e relativamente ao primeiro aspecto, poderá dizer-se que a recusa do réu em apresentar-se a exame é ilegítima. É ilegítima porque com a sua conduta violou o dever de cooperação com a justiça - artigo 264o , artigo 266o e artigo 519o , do Código de Processo Civil.
Vejamos porquê.
As razões que alega não se afiguram sérias, à luz do senso comum, e não podem ser atendíveis em condições normais como justificativas da recusa ao exame: «Medo às agulhas», «fobia aos hospitais, «receio de ver sangue ou entrar no hospital» (Cfr. Ponto 4, parte II), é uma convergência de desculpas que não assumem idoneidade que leve a contemporizar com a credibilidade da explicação.
A nosso ver não constituem razões relevantes para o fim em vista pela lei - demasiado valioso para a singularidade da desculpa - em termos de padrão normal de comportamento, que possam sustentar com seriedade, a justificação da recusa.
Estão em causa interesses demasiado estimáveis no confronto da lei e da desculpa, para que esta seja considerada suficientemente idónea e prevalecente sobre a importância daquela valia.
Sem necessidade de maior desenvolvimento, afigura-se-nos, inadmissível aceitar os motivos alegados pelo agravante para legitimar a sua recusa a cooperar com o Tribunal, não correspondendo aos apelos pela forma aberta, disponível e o mais franqueadora possível, quer da parte do Tribunal, quer da parte do Instituto, como indicado em II.
A recusa não pode por isso, considerar-se justificada com idoneidade ou respeitabilidade suficientes, para ser reputada como legítima. Não há racionalidade na explicação da recusa pela superficialidade dos motivos concretos invocados pela parte recusante. Observe-se até que o réu chegou a indicar o dia 23 de Dezembro de 1998, para voluntariamente se apresentar ao exame. (Ponto 2, parte II).
3. A prática do acto médico pela força, no quadro comum do processo civil, para recolha de sangue é incompatível com a dignidade humana (dignidade que referia expressamente o No 3, então aplicável, do artigo 519o ). E incompatível ainda com os direitos de natureza pessoal que a Constituição acautela, designadamente no artigo 26o , No 1 e No 2, norma adiante retomada.
A Revista do Ministério Público (No 58, pág. 179, ano de 1994) havia surpreendido a situação, num estudo do Dr. Lopes do Rego, antes da nova redacção do artigo 519o .
Nesse estudo, se diz que o regime mais equilibrado é o que se traduz na presunção da paternidade daquele que, em termos injustificados, e portanto ilegítimos, se recusou à efectivação do exame. Retiremos a seguinte passagem para melhor compreensão: «A recusa surgirá no plano prático e no comum dos casos, em que o réu se considera no plano subjectivo pai biológico, recusando a feitura do exame, com o fundado receio de que o seu resultado venha a traduzir o irremediável naufrágio da contestação que laboriosamente construiu ao longo do processo.»
A recusa implicará para o réu o ónus de demonstrar que não é pai, alcançando-se este resultado através do preceito do artigo 344o , No 2, do Código Civil.
Na realidade ao inviabilizar de todo o exame de sangue - que pressupõe fatalmente a sua cooperação, que recusa - o pretenso pai:
- torna impossível ao autor, onerado com a demonstração da prova biológica, a prova directa do facto da procriação;
- a sua conduta afigura-se como culposa, na medida em que o tribunal, haja considerado as razões pretensamente invocadas, para se subtrair ao exame, qualificando a recusa como ilegítima».
4. Naturalmente que esta passagem do autor citado, parece constituir acto premonitório do texto revisto do artigo 519o (No 2), ora vigente. Aí se consagra, agora:
«Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no artigo No 2 do artigo 344o do Código Civil».
A anterior redacção deste artigo, vigente ao tempo (artigo 16o do Decreto-Lei No 329-A/1995, de 12 de Dezembro) não impedia já esta inversão do ónus da prova, resultante da aplicação dos princípios gerais sobre a matéria, como o autor citado defende - e nós concordamos - como resultante da própria aplicação do artigo 344o -2, do Código Civil.
                












































































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