Investigação Criminal e Media (*)

 

Pedro do Carmo
Procurador-Adjunto (**)

Julgo que todos temos a noção de que a relação comunicação social/ /justiça se desenvolve, essencialmente, em torno de um bem relativamente escasso e informativamente valioso – o crime.
O valor do crime, enquanto notícia/informação, advém-lhe, naturalmente, da sua capacidade de suscitar o interesse da generalidade das pessoas, independentemente da sua origem social, nível cultural e/ou económico, sexo ou idade, sucedendo que esse interesse é tanto maior quanto maior for a gravidade ou singularidade do crime, da vítima e/ou do seu autor.
Sucede, porém, que o crime enquanto notícia não coincide senão marginalmente com o crime enquanto conceito ou construção jurídica. Com efeito, o crime notícia será mais o comportamento humano que, independentemente da sua relevância ou irrelevância jurídico-penal, atenta contra algum bem ou interesse que a generalidade das pessoas considera valioso ou digno de protecção – a criança de dez anos que dispara sobre um seu colega da mesma idade, ainda que, juridicamente, nenhum crime lhe possa ser imputado, não deixa de cometer um “crime” aos olhos do comum dos cidadãos; o comerciante que fere mortalmente alguém que surpreende no interior do seu estabelecimento a furtar, mesmo que não verificados os requisitos da legítima defesa, tenderá a ser absolvido no julgamento popular.
Deve esta diferença de perspectivas ou pontos de vista ser relevante para quem administra a justiça (ou para quem, como, é o caso da Polícia Judiciária, a ajuda a administrar)? De modo algum, porque só a perspectiva jurídica deve orientar o concreto exercício da função jurisdicional ou investigatória. Mas já não para quem cumpre divulgar publicamente a informação relativa a cada fenómeno criminoso, pois este tenderá a adoptar a perspectiva do seu leitor ou, se preferirem, do seu público ou consumidor.
Esta coincidência de pontos de vista, entre outros, poderá decorrer dos seguintes factores: do facto da quase totalidade dos jornalistas, mesmo aqueles que possuem formação jurídica, não dominar com rigor as implicações jurídicas das matérias que tem de noticiar; porque os destinatários da notícia também não as dominam; porque muitas dessas implicações têm um tal grau de abstracção que, na prática, são incompreensíveis ou indecifráveis para a maior parte das pessoas (jornalistas incluídos) e, consequentemente, sem valor noticioso enquanto tais; porque o espaço noticioso, independentemente do seu suporte, é limitado, raramente sendo compaginável com informação detalhada ou abundante.
Por força dos citados factores (e outros poderiam também ser referidos), temos de reconhecer que, a par de uma profusão de detalhes fácticos sobre o crime, são geralmente escassas ou incorrectas as referências jurídicas por ele suscitadas (a título meramente exemplificativo, refira-se que, ainda hoje, vinte e três anos decorridos sobre entrada em vigor do CPP vigente, muitos jornalistas ainda se referem ao TIR em termos equivalentes à obrigação de permanência na habitação ou proibição de ausência para o estrangeiro). Existe, no entanto, a seguinte excepção: quando as próprias soluções legais ou decisões jurisdicionais, pelo seu carácter polémico ou exemplar, são elas mesmas notícia.
E aqui, mais uma vez, o jornalista tenderá a identificar-se com o ponto de vista do cidadão comum, valorizando as decisões ou factos judiciários em si mesmos, indiferentemente da sua normal […]

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(*) Corresponde, com ligeira adaptação, à comunicação apresentada no Seminário Justiça e Media, Mestrado em Comunicação, Media e Justiça, realizado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no dia 11 de Novembro de 2010.
(**) Em comissão de serviço como Director Nacional-Adjunto da Polícia Judiciária desde 16/8/2004, inicialmente na Directoria de Coimbra e, desde 11/6/2008, na Direcção Nacional.