O direito legal de preferência sobre bens culturais

João Canelhas Duro
Advogado
Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

SUMÁRIO: I — O Direito Legal de Preferência na Transmissão de Bens Culturais Privados: 1. Enquadramento; 2. A Consagração Legal; 2.1. Na Lei de Bases do Património Cultural; 2.2. Direitos Especiais de Preferência; 3. O Exercício do Direito; 3.1. O Dever de Comunicação da Transmissão; 3.2. Negócio Jurídico que Constitui o Direito de Preferência; 3.3. Objecto da Preferência; 3.4. Titulares e Âmbito da Preferência; 3.5. A Renúncia Antecipada ao Exercício do Direito Relativo aos Bens Culturais Imóveis; 3.6. O Prazo; 3.7. O Preço; 3.8. Venda em Hasta Pública e Leilão; 3.9. Natureza do Poder das Entidades Públicas; 3.10. A Aquisição da Propriedade; 4. Violação da Obrigação de Dar Preferência; 5. Natureza Jurídica do Contrato; II — O Direito Legal de Preferência Sobre Bens Culturais Públicos: 1. A Alienação de Bens Culturais Públicos; 2. O Direito Legal de Preferência na Transmissão de Bens Culturais Públicos

I — O Direito Legal de Preferência na Transmissão de Bens Culturais Privados

1. Enquadramento

De acordo com o disposto na alínea e) do art. 9.º da Constituição, é tarefa fundamental do Estado proteger e valorizar o património cultural português. O imperativo da protecção pode ser exigido por lei aos proprietários privados, seja através da proibição de atentar contra esse património, seja pela obrigação de realizar as diligências necessárias à sua conservação. Já o fim da valorização não pode ser imposto aos proprietários privados sem prejuízo dos seus direitos constitucionais. Conhecedora desta realidade a Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro (1), relativizou o dever constitucional de valorização aposto no n.º 1 do art. 78.º, conferindo-lhe a seguinte configuração “todos têm o dever de valorizar o património cultural, sem prejuízo dos seus direitos, agindo, na medida das respectivas capacidades, com o fito da divulgação, acesso à fruição e enriquecimento dos valores culturais que nele se manifestam” (2).
Como decorre da norma citada, a valorização do património cultural consiste sobretudo no acesso e fruição do público, constituindo estas prerrogativas instrumento fundamental do desenvolvimento da personalidade e, di-lo também a LPC, da realização da dignidade da pessoa humana (3). Existindo constrangimentos à plena valorização dos bens culturais privados, os ordenamentos jurídicos outorgam às entidades públicas mecanismos privilegiados para a aquisição destes bens, os quais podem também servir o imperativo da conservação. O mais generalizado em Direito Comparado é o direito legal de preferência na transmissão desses bens.
Para além do direito de preferência são de referir mais três, os quais em Direito Comparado revestem diferentes configurações: a prerrogativa de aquisição de bens culturais que tenham sido propostos para exportação do seu Estado de origem; a expropriação, tanto com fins de preservação como de valorização, mas em qualquer caso sendo o próprio bem expropriado o fim de utilidade pública a tutelar ou valorizar; e a aquisição da propriedade pelo Estado de origem em caso de exportação ilícita perpetrada pelo proprietário.

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(1) Lei de bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, doravante referida por LPC.
(2) Art. 11.º, n.º 3 da LPC. A previsão legal do acesso e visita pública consta da alínea a) do n.º 2 do art. 21.º, encontrando-se ainda por regulamentar.
(3) Art. 3.º, n.º 2.