Vera Lúcia Raposo
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Advogada
vera@fd.uc.pt
1. Segredo de justiça. 2. Segredo de justiça e comunicação social. 3. O crime de violação de segredo de justiça. 3.1. Caso Campos Dâmaso v. Portugal. 4. O conflito de interesses em presença. 4.1. Direito a informar e direito à informação. 4.1.1. Direito a informar. 4.1.1.1. O interesse legítimo dos jornalistas. 4.1.2 Direito a ser informado. 4.2. Direito à privacidade. 4.2.1. Regimes especiais de protecção da privacidade. 4.2.2. Escutas telefónicas. 4.2.3. A presunção da inocência. 4.3. A realização da justiça.
1. Segredo de justiça
Ao contrário do modelo de processo criminal que nos chega da experiência norte-americana (sobretudo por via de Hollywood), entre nós, tradicionalmente, uma parte substancial do processo está subtraída ao escrutínio público, muito embora a recente reforma processual penal tenha alargado o alcance da publicidade.
Até à reforma de 2007, o art. 86.º do Código de Processo Penal (CPP) estipulava que o processo criminal era público a partir da fase de instrução ou a partir do momento em que esta não pudesse mais ser requerida (muito embora já então fossem admitidas algumas brechas ao carácter secreto do processo). Ainda assim, poderíamos deparar-nos com um processo onde a instrução fosse pública, o que ocorreria caso a instrução fosse solicitada pelo arguido e este não se opusesse à publicidade da mesma, o que permitia deduzir que o carácter secreto da fase instrutória se justificava unicamente em defesa do seu bom nome e da sua vida privada.
Em contrapartida, a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, veio determinar como princípio regra a publicidade, como se pode ler no actual art. 86.º/1 do CPP: “O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei”(1). Por outras palavras, o inquérito apenas será secreto se assim for decidido pelo juiz de instrução ou pelo Ministério Público, no seguimento de um requerimento apresentado pelo arguido, o assistente ou o ofendido. Em última análise a decisão cabe sempre ao juiz de instrução, dado que o despacho do Ministério Público carece impreterivelmente de validação por parte do juiz de instrução, e a decisão que o Ministério Público tome pode ser reapreciada por ele.
Efectivamente, o n.º 3 do art. 86.º do CPP autoriza o Ministério Público a afastar a publicidade durante o inquérito, quando assim o ditem o interesse da investigação ou das pessoas envolvidas no processo, embora, como já se referiu, esta sua decisão exija posterior homologação judicial. O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar acerca desta imposição de homologação da decisão do Ministério Público por parte do juiz de instrução (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 110/2009, de 11 de Março de 2009), não considerando a norma inconstitucional. Ainda assim, não podemos deixar de recordar o voto de vencido da juíza Conselheira Maria João Antunes: “[a] validação, pelo juiz de instrução, da determinação do Ministério Público em aplicar ao processo, durante a fase de inquérito, o segredo de justiça, quando os interesses da investigação o justifiquem, põe em causa a repartição constitucional das funções de investigação e acusa-
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(1) Por força destas normas, a conclusão que se tira do hodierno regime processual penal é que “hoje, apesar do art. 20.º, n.º 3, não há segredo de justiça, há apenas excepções à publicidade” (MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO, Código de Processo Penal (Comentários e Notas Práticas), Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 223).