Segredo ou Publicidade? A tentação de Kafka (1) na Investigação Criminal portuguesa

 

Inês Ferreira Leite
Assistente de Direito Penal
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

SUMÁRIO: I — INTRODUÇÃO; 1. Os antecedentes da reforma do Código de Processo Penal de 2007; 2. A Reforma de 2007: processo e objectivos; 3. As propostas da Unidade de Missão, o processo legislativo e o novo Código de Processo Penal; 4. As alterações propostas em 2010; 5. Análise comparativa dos diversos regimes; II — PUBLICIDADE E EFICÁCIA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL; 6. Trajectos de reforma: algumas perplexidades; 7. As imposições constitucionais e o conflito de interesses; 8. A tutela da investigação e o segredo interno; III — SEGREDO DE JUSTIÇA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL; 9. Segredo de Justiça, interesse público e reserva da vida privada; 10. A tutela da investigação, os direitos de terceiros e o segredo externo; 11. O novo crime de violação do segredo de justiça; 12. O art. 88.º n.º 4 do Código de Processo Penal de 2007.

I – INTRODUÇÃO:

1. Os antecedentes da reforma do Código de Processo Penal de 2007

O presente estudo (2) tem como linha condutora um esforço de leitura constitucional do regime do segredo de justiça em vigor, quer no âmbito processual, quer no que respeita à respectiva tutela penal. Para que se possa alcançar uma melhor compreensão do texto legal em vigor, parece- -me fundamental que se conheçam os seus antecedentes e se conheçam também os objectivos e os diversos intervenientes naquilo que é um processo legislativo mas, inevitavelmente também, um processo de consenso político.

As alterações introduzidas pela reforma do Código de Processo Penal de 2007 – aprovadas pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto – não correspondem a um mero capricho do legislador ou qualquer espécie de fúria legislativa de um Governo ou legislatura, embora se possa apontar alguma precipitação nos métodos escolhidos e, talvez, algum radicalismo nas soluções finalmente impostas. O certo é que estas alterações constituíram uma muito rogada resposta a um preocupante avolumar de jurisprudência contraditória em matérias fulcrais para a condução do processo penal e para a tutela da posição processual do arguido e do assistente (3) e à extensa – e extremamente crítica – jurisprudência constitucional (4). Na verdade, uma considerável parte das alterações introduzidas pelo legislador de 2007 surge como uma solução in extremis para certos excessos jurisprudenciais e para os inúmeros abusos por parte dos meios de comunicação social.

Sejamos claros, se fizermos um périplo pelas notícias e artigos publicados nos vários ramos da comunicação social, a conclusão não pode ser outra: no início de 2007, o processo penal estava em crise. O sistema processual penal português, os tribunais e a própria prossecução de justiça enfrentavam a maior crise de sempre (5). O mediatismo de processos como o Caso Casa Pia, o Caso Esmeralda, o Caso do Envelope 9, o Caso Apito […]

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(1) Sobre a associação de significado, no plano jurídico, entre “O Processo” de Kafka e o espaço do sigilo no processo penal, ver VICTOR CORREIA, “Direito e Literatura. O processo de Kafka”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 69, vol. VII, 2009, disponível também em versão integral no sítio da Ordem dos Advogados, em  http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=84047&ida=84120.
(2) Este texto parte do esboço delineado para a conferência sobre Segredo de Justiça, apresentada no âmbito do curso de Pós-graduação da Faculdade de Direito de Lisboa dedicado ao tema “Reforma e Crise do Direito Penal e do Direito Processual Penal na Sociedade de Risco”, em 2008 e do I Curso de Pós-graduação em Direito da Investigação e da Prova, realizado em 2010 na mesma Faculdade.
(3) Ver, entre outros, Acórdão da Relação do Porto de 27 de Fevereiro de 2002, Acórdão da Relação do Porto de 18 de Abril de 2007, Acórdão da Relação de Guimarães de 14 de Junho de 2004. Em sentido divergente, ainda antes da reforma, de modo representativo da jurisprudência de Lisboa ver Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Dezembro de 2006, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/.
(4) Concretamente sobre a problemática do acesso aos autos em fase de inquérito ver, entre outros: Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 121/97 de 19 de Fevereiro, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 416/03 de 24 de Setembro e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 607/03 de 5 de Dezembro, todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
(5) Sobre a importância da comunicação social para a prossecução de justiça e a estabilização da paz pública ver CUNHA RODRIGUES, “Justiça e Comunicação Social. Mediação e Interacção”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 7, n.º 4, 1997, pp., 531 e ss.; e SOUTO MOURA, “Comunicação social e segredo de justiça hoje”, in Estudos de Direito da Comunicação, Coimbra, Instituto Jurídico da Comunicação, 2002, pp. 65 e ss.