Page 106 - Revista do Ministério Público Nº 49
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Revista: No 49 - 1o trimestre de 1992
Capítulo: Vária
Título: B) Recortes - Dias tensos nos «bairros negros» da Damaia - O fantasma da violência racial
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Página: 199
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B) Recortes - Dias tensos nos «bairros negros» da Damaia - O fantasma da violência racial
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Vivem-se dias tensos na Damaia. No dia 15 de Janeiro, um grupo de vinte jovens negros provocou é
desacatos, partindo vidros de automóveis. A 22, um jovem angolano foi morto a tiro pela polícia. Dois dias úóó
depois, os alunos das escolas secundárias fizeram greve, em protesto contra constantes assaltos e íé
agresses por parte de rapazes africanos. Como pano de fundo, uma vaga de pequena delinquência. íô
Irrompe, de sbito, a desconfiança entre os moradores daquela freguesia da Amadora e os habitantes dos áç
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bairros cabo-verdianos que a rodeiam.
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Cova da Moura, Alto da Estrada Militar, Estrela de África, 6 de Maio, Fontainhas são nomes que andam em ç
muitas lnguas, como origem de todos os medos. Santos e pecadores pagam por igual e a cor da pele çãí
contende tudo. H troca de acusações entre «pretos» e «tugas» (portugueses). Paira o receio de uma ãç
psicose racial difcil de controlar e responsáveis pela acção social tentam deitar água na fervura: «O que se éõ
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passa aqui  o mesmo que se passa no Casal Ventoso ou em qualquer outro bairro degradado com úõ
populao branca; s que, aqui, o factor racial vem logo ao de cima».
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Testemunhos recolhidos no local parecem concordar num ponto: afinal, grande parte dos desacatos pode éçã
partir de jovens vindos de bairros distantes, mas que elegeram a «cintura cabo-verdiana» da Damaia como 
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base para diversos tipos de comrcio ilícitos. áíó
A penetrao das redes de venda de droga nos bairros degradados da zona é assinalada, com particular ã
intensidade, desde h dois anos. Surgiu, então, um fenómeno até aí desconhecido: a delinquência no ãç
interior dos prprios bairros, com roubos em estendais, residências e estabelecimentos.
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O EXPRESSO pde ver, nas Fontainhas, droga e produtos roubados serem comerciados, praticamente às á
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claras, por um grupo vindo de fora: no caso, três jovens brancos. Todos sabem, quem são os óãã
consumidores e onde se renem. No so raros, segundo os moradores, os incidentes ligados a é
«cobranas difceis», nos bairros e na sua periferia.
Uma nova realidade social alimenta estes fenmenos: a primeira geração dos nascidos em Portugal, filhos çãê
de cabo-verdianos chegados na grande vaga do início dos anos 70, que tem agora entre quinze e vinte á

anos. O abandono escolar, principalmente entre os rapazes, é elevadíssimo. Milhares de jovens enfrentam ç
a vida adulta sem habilitaes escolares alm do preparatório, e não são atraídos pela vida sem ã
perspectivas dos seus pais, na construo civil ou como cantoneiros. «Na constituição pode ganhar-se á
muito bem, mas o trabalho  demasiado duro», afirmam.

Entre lixo, lama e casas nunca completas, coexistindo com a cultura ancestral das famílias, mas já em 
ruptura com ela, muitos interiorizam a segregao e reagem como grupo acossado ao ambiente de 
catstrofe que os rodeia. Trabalham por empreitadas, o estritamente necessário, e no intervalo procuram a 
vida que lhes negam. «O ambiente familiar, com os pais a trabalhar e os laços informais próprios dos cabo- 
verdianos, com muitos filhos de vrias mes, d grande independência aos jovens», explica uma 

assistente social.
Sentam-se pelos becos, conversam e jogam, ou saem dos bairros, em grupos. Passeiam a sua negritude, 
fazem da diferena fora, exibem-na na cara dos «de fora». Esperam nos caminhos das escolas, 
provocam as raparigas, so cruis para, por uma vez, se sentirem superiores. Para alguns, a droga é uma í
porta de sada, e com ela vem a pequena delinquncia para alimentar o vcio. Vingam-se dos «tugas» em ã

quem pressentem rejeio, mesmo aquela branda rejeio que toma a forma da desconfiança.
Vingam-se, talvez, daquele alto muro branco que empareda o negro bairro Estrela de África - construído 
recentemente pela CP, na estao da Damaia, furta as barracas aos olhos dos turistas que demandam ê
Sintra. 

Na forma, os incidentes da Damaia no diferem dos provocados pelos «gangs» de jovens europeus do 
Bairro do Relgio ou das Galinheiras.
Mas o factor racial revelou, como nunca at aqui, um medo latente e uma violncia oculta. «Se calhar 
devamos fazer como na Alemanha», deixa escapar, no meio de uma conversa serena e lúcida sobre os 
acontecimentos, um pedreiro branco que sempre fez parceria com africanos, na Cova da Moura. «Isto É

resolvia-se com um polcia morto», atira, nas Fontainhas, um adolescente cabo-verdiano. « possível que 
se esteja aqui a criar um barril de plvora», desabafa uma assistente social, no Estrela da Africa.
Face a estranhos, os jovens falam com gosto de como vivem; mas, questionados sobre os últimos Á
acontecimentos, funcionam as defesas de grupo. Com cara de pau ou risos dengosos, fintam as 
perguntas. Quando muito admitem, como nas Fontainhas: «Sabemos, mas no contamos». Talvez não tão 

inocentes como afirmam, nem to culpados como querem dar a entender.
No faltam, porm, acusaes  polcia: J no nos atrevemos a passar perto das escolas. Agarram-nos, 
«anda c,  preto!», e levam-nos para a esquadra da Damaia. Cortam-nos o cabelo e batem-nos. s vezes 
do-nos banho com gua fria». A histria  repetida em vrios bairros. Um jovem da Cova de Moura exibe










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