Page 107 - Revista do Ministério Público Nº 49
P. 107
a cabeça cheia de «carecadas», «Já só a passear na rua, há dois dias», garante. Talvez não por acaso, o
corte de cabelo é uma agressão frequente às alunas do secundário.
Junto à Cova de Moura, na noite de terça-feira da semana passada, cinco guardas-nocturnos, aos tiros
para o ar, puseram em fuga um grupo de jovens reunidos à volta da fogueira, em velhos sofás. Estes
áá
proclamam-se inocentes de qualquer pecado: «Gostávamos de manter as tradições africanas». Os jovens
com bicicleta guardam a factura de compra na carteira. Dizem que a polícia lhes tira as bicicletas,
acusando-os de roubo.
Na esquadra da Damaia, o sub-chefe Augusto afirma-se «indignado» com as acusações, que refuta ãáç
categoricamente: «Todos são tratados com dignidade, ninguém consegue fazer uma acusação concreta»,
á
afirma. Pressionado por todos os lados, acusado por pais e comerciantes de ineficácia na protecção e
«entalado» pela sua escassez de meios, desabafa: «Sinto-me mais incomodado aqui do que na guerra de ã
Africa».
á
Depois da greve nas escolas secundárias, alguns professores passaram a mandar sair os alunos dez
á
minutos mais cedo, para evitar maus encontros. Mas, num plenário de pais, não faltou quem prometesse
mandar os filhos para outras escolas, no próximo ano. O que já sucede com muitas crianças mais novas:
h escolas primrias, nas freguesias da zona, onde 50 e mesmo 90 por cento das crianças são cabo- é
verdianas. So os ciclos viciosos da segregação.
í
Os incidentes excitaram muitos ânimos, ferveram boatos. Fala-se à boca--pequena da tentativa de violação á
á
de uma aluna do secundrio, mas ninguém se queixou à polícia e não há quem aponte nomes. Houve á
quem propusesse um plenrio da população no cinema da Damaia, mas a Junta de Freguesia apelou à
calma: «Era um empolamento e não sabíamos onde iria parar», explica o secretário da Junta. Uma
comisso autrquica est em contacto com a polícia e as associações dos bairros.
Responsveis associativos cabo-verdianos dizem que o medo também existe nos bairros. Queixam-se de ç
que h brancos que provocam os jovens negros, quando os vêem em grupo. Lamentam o papel negativo
de alguma Imprensa, com artigos em tom alarmista e confessam temer a lógica do «olho por olho». «Há
tempos, um comerciante veio pedir-nos para controlarmos um grupo que já lhe tinha partido a montra
vrias vezes ou ainda matava algum; os jovens voltaram a partir-lhe a montra, não para roubar, mas só por
vingana». O receio que aparea quem goste de atirar azeite para a fogueira.
Frederico Carvalho e Vtor Rainho - Expresso de 8.2.92