Page 2 - Revista do Ministério Público Nº 79
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Revista:
No 79 - 3o trimestre de 1999
Autor:
Eduardo Maia Costa
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(Director da Revista do Ministério Público)
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Capítulo:
íáNota de Abertura
Ttulo:
A intervenção em Timor inaugura uma nova era na ordem internacional?
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Pgina:
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A intervenção em Timor inaugura uma nova era na ordem internacional?
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Escassos meses após a desastrosa intervenção na Jugoslávia em nome dos valores humanitários, o drama de Timor êãé
veio relanar a questão do direito de ingerência. Tarde e com muita parcimónia (e cerimónia) foi esse direito exercido. àç
De qualquer forma, a intervenção em Timor tem características completamente inovadoras (e opostas até) ã
relativamente levada a cabo na Jugoslávia, e pode mesmo vir a constituir um ponto de viragem (um precedente çêéç
decisivo) na protecão dos direitos humanos a nível internacional.
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Pela primeira vez (pela primeira vez) uma intervenção não foi ditada pelos interesses dos intervenientes ou das óééá
grandes potncias agindo por seu intermédio. Pelo contrário, foi preciso vencer o imobilismo e mesmo a resistência çã
dos poderosos (e nomeadamente da superpotência) para a acção se concretizar. íêçã
Concretizao que s se tornou possível por três grandes razões: em primeiro lugar, a luta heróica, por vezes íáêçãã
invisvel, mas sempre persistente, do povo timorense; depois, a mobilização maciça do povo português e dos seus õé
representantes institucionais; finalmente, a denúncia da situação por parte da comunicação social internacional e das áçéé
organizaes dos direitos humanos e a consequente simpatia que a causa timorense adquiriu na (ainda muito áâ
incipiente) opinio pblica internacional.
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Desta vez, ao contrrio do que aconteceu na Jugoslávia, o procedimento seguido foi correcto (decisão tomada pelo
Conselho de Segurana da ONU), os meios utilizados são adequados (melhor, não excessivos e porventura até óó
insuficientes) e o fim legtimo (porque genuinamente em defesa dos direitos individuais e colectivos de um povo). éé
Desta vez, o direito triunfou sobre a força. Desta vez, houve realmente ingerência humanitária (embora com íáêí
«autorizao» - contrariada - do ingerido).
O caso de Timor veio demonstrar que possível fazer bom e correcto uso do direito de ingerência humanitária, pelo á
que completamente inaceitvel caracteriz-lo como um instrumento de intervenção colonianista ou imperialista e óé
tentar ressuscitar, para o combater, um anacrnico princípio de soberania em termos absolutos. á
Recordemos. A ordem internacional sada da segunda guerra mundial, vertida desde logo na Carta das Nações àãê
Unidas, contm um princpio absolutamente inovador - o da protecção dos direitos humanos - como objectivo e tarefa éá
da comunidade internacional. Que assim tivesse acontecido, resultou da consciência de que o respeito absoluto pelo çá
princpio da soberania ter sido responsvel pelas grandes tragédias deste século, que aliás não têm paralelo na áç
histria da humanidade.
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A defesa dos direitos humanos passou a ser uma tarefa de todos. A protecção desses direitos deixou de ter ê
fronteiras. E admite necessariamente o recurso fora armada, porque a paz, sendo um bem fundador da ordem íç
internacional, para ser autntica e duradoura, tem de ser uma paz justa. ã
O direito de ingerncia humanitria nasce, pois, da necessidade de salvaguarda dos direitos humanos por parte da
comunidade internacional, onde quer que eles sejam violados de forma intolerável. Mas é uma tarefa que compete à
exclusivamente aos rgos representativos dessa comunidade.
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Daqui decorrem consequncias muito importantes. Em primeiro lugar, só os órgãos representativos da comunidade
internacional, isto , as Naes Unidas, tm legitimidade para tomar decisões sobre o exercício desse direito. A não ç
ser assim, ou seja, se se reconhecesse o direito de interpretar, a seu modo, a verificação dos pressupostos da ãá
ingerncia a um estado ou grupo de estados, estaria aberto caminho para a «lei da selva» nas relações internacionais ç
(exactamente o que sucedeu no caso da Jugoslvia). Nenhum estado ou grupo de estados representa a comunidade é
internacional.
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Outro parmetro essencial o dos limites ao uso da fora, ou seja, a relevncia do princípio da proporcionalidade, ã
adequao e proibio do excesso, princpio tambm amplamente violado na intervenção nos Balcãs.
Acresce que a ingerncia (armada) s se justificar como ultima ratio, isto , quando outros meios, menos gravosos,
se mostrarem ineficazes (como sabemos tambm esta regra no foi respeitada pela NATO).
Finalmente, falemos da justia internacional. No basta proteger os direitos humanos. É preciso responsabilizar
criminalmente os seus violadores. Foi este imperativo que levou criao dos tribunais de Nuremberga e de Tóquio
e, mais recentemente, dos tribunais para a ex-Jugoslvia e para o Ruanda. No entanto, e talvez com excepção do
ltimo, estes tribunais, para alm da sua competncia especfica, e por isso limitada, reflectem uma lógica de «justiça
dos vencedores» que estranha ao prprio conceito de justia.
H que avanar para uma instncia permanente e com competncia universal, para um autêntico Tribunal Penal
Internacional. Curiosamente, ele j existe. Melhor, est criado, mas ainda no existe. A convenção que o institui í
aguarda ainda a ratificao por parte da grande maioria dos estados que a subscreveu. Entre os quais, note-se,
Portugal.
Concluindo. Timor veio demonstrar que o direito de ingerncia humanitria, sendo embora passvel de uso abusivo
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(como qualquer direito), no necessariamente um instrumento dos poderosos para exclusiva protecão dos seus
interesses. Pelo contrrio. Trata-se de um meio essencial para instaurar uma ordem internacional mais justa. Timor
tambm veio lembrar quo urgente a implementao de uma justia penal internacional. Portugal, que tão
empenhadamente lutou por Timor, tem de continuar a lutar por essas causas.