Page 4 - Revista do Ministério Público Nº 79
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encontrar um significado de "crise" que, pelo menos metaforicamente, poderia ser aplicado. Esse é o de
"crise emotiva", ou seja, "uma descarga emotiva brusca caracterizada por um sentimento de angústia
seguido de tremores ou de rigidez muscular, de gritos ou de gemidos, e que termina por um acesso de
soluços espasmódicos" ( 6 ). Contudo, não gostaria de discutir estas manifestações da "crise da justiça", ãê
no porque estes conflitos interessados me pareçam totalmente desinteressantes, mas sim porque me ê
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parece que eles são um reflexo e uma consequência de algo mais vasto e importante. É disso que gostaria ç
de falar. De uma crise que já não é apenas uma crise da administração da justiça, mas também uma crise õçã
poltica da justiça, ou seja do poder judicial.
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Para isso, vou dividir a minha apresentação em duas partes. Na primeira, queria sugerir que a crise da íãé
justia , em primeiro lugar, uma crise latente e comum a todos os sistemas democráticos, ligada a uma ã
profunda incerteza normativa acerca do lugar que o poder judicial deve ocupar nas suas relações com o ãíó
poder poltico. Esse lugar é geralmente designado na teoria da democracia através de um conceito que éááé
hoje parece ser consensual: a "independência do poder judicial". Aquilo que, em suma, gostaria de fazer é çéç
sugerir que esse consenso em torno da independência do poder judicial é um falso consenso. De seguida, çéãã
gostaria de dar algum conteúdo substantivo aos dilemas teóricos discutidos na primeira parte, apontando ãí
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situaes e processos políticos que fazem com que a crise latente do poder judicial nas democracias se í
possa transformar numa crise manifesta, como me parece ser aquela que enfrentamos hoje.
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2. O lugar incerto do poder judicial nas sociedades democráticas
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Vamos ento ao primeiro ponto: a incerteza normativa em torno do lugar do poder judicial no sistema ááóé
poltico. O que a independncia do poder judicial, e para que serve? À superfície, as diferentes respostas ççã
que a teoria da democracia d a estas questões são convergentes e relativamente consensuais. Em ã
particular, entende-se hoje que a independência judicial resulta de uma combinação entre, pelo menos, ê
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trs componentes: imparcialidade, uma vasta jurisdição e insulação política ( 7 ). "Imparcialidade" consiste
na noo de que o juiz dever comportar-se como um árbitro neutral e imparcial na interpretação dos çõãç
factos e na aplicao da lei em situaes de litígio entre pessoas individuais ou colectivas. A ligação éêã
fundamental entre o conceito de imparcialidade e os valores da democracia constitucional e do Estado de
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Direito democrtico reside no facto dessa imparcialidade garantir a igualdade dos cidadãos perante a lei, ã
independentemente das desigualdades inscritas na ordem social.
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Todavia, na teoria democrtica, a independncia judicial não pode ser limitada à imparcialidade. A razão éíó
mais evidente para isso reside no facto de algo semelhante ao que poderíamos chamar "imparcialidade" áçç
parecer coexistir com alguns regimes no democrticos. É verdade que, como variados estudos empíricos õããáíà
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tm demonstrado, quando o poder judicial directamente usado para dirimir conflitos com implicações éé
polticas e sociais relevantes nos regimes ditatoriais (ou seja, quando o Estado ou interesses sociais
privilegiados so parte), a imparcialidade normalmente destruída através do controlo político vigilante da
composio dos tribunais ou de interferncias formais ou informais no desfecho dos casos ( 8 ). Mas éó
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quando o poder poltico ditatorial tem o cuidado de retirar jurisdição aos tribunais nas áreas mais sensíveis ç
da conflituosidade poltica e social, a "imparcialidade" possvel, pelo menos no sentido da prevalência de áçã
critrios tcnicos e profissionais na tomada de decises ( 9 ). Assim, juízes imparciais podem coexistir com ç
- ou mesmo fortalecer, porque os legitimam - regimes autoritrios. Logo, independência judicial tem de õé
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implicar algo mais que imparcialidade. Ela implica tambm uma vasta jurisdição, ou seja, ela implica poder. íã
A terceira componente da independncia judicial a "insularidade poltica" ( 10 ). A integração dos tribunais
no aparelho de Estado e o poder de que dispem implicam que a protecção da liberdade e dos direitos
individuais, cvicos e polticos s possa ser assegurada quando o poder político não consegue manipular à
os tribunais para fins especficos, entre os quais se conta, potencialmente, a desvirtuação dos próprios ó
direitos democrticos com o objectivo da perpetuao no poder. Alis, a histria recente das democracias á
veio adicionar ainda mais qualquer coisa a esta noo de independncia. Aos tribunais cabe não só dirimir á
conflitos entre os cidados e entre estes e o Estado em condies de imparcialidade e insularidade
poltica, mas tambm uma proteco mais activa e positiva dos direitos democrticos, mesmo quando isso
significa a limitao do poder das maiorias polticas ou a revogao das suas medidas legislativas. A
expanso da judicial review da sua ptria original - os Estados Unidos - generalidade das democracias ç
nascidas no ps-Guerra, um processo reforado aps as transies democrticas no Sul e no Leste da
Europa e na Amrica Latina, a consagrao aparentemente definitiva e consensual dos princípios da
democracia constitucional e da necessidade de se
ã
garantir um poder judicial que, porque poderoso, ter tambm de estar insulado politicamente.
A maior contribuio das cincias sociais para o estudo da justia provavelmente a sua capacidade para
perturbar estes consensos aparentes em torno do lugar do poder judicial nas sociedades democráticas.
Primeiro, atravs da demonstrao de que o exerccio do poder - neste caso do poder de julgar - não é
nunca "imparcial". Dcadas de estudos sociolgicos e scio-polticos sobre a justia dedicaram-se a
demonstrar que, por um lado, a aplicao da lei e a resoluo de conflitos vem acompanhada de uma
é
margem de discricionariedade para os magistrados, que o uso dessa margem de discricionariedade
sistematicamente afectado por factores estranhos "lei" e que alguns desses factores esto ligados aos