Page 3 - Revista do Ministério Público Nº 79
P. 3












Revista:
No 79 - 3o trimestre de 1999
Autor:
Pedro Coutinho Magalhães
(Inst. Ciên. Soc. Univ. Lisboa e Inst. Est. Pol. Univ. Católica Portuguesa)
Capítulo:
áEstudos
ã
Título:
Corporativismo, judicialização da política e a "crise da justiça " em Portugal
çííç
Pgina:
11
éçççã
ááóêõ
êç
çáúã
Corporativismo, judicialização da política e a "crise da justiça" em Portugal
çããçç
áã
1. Introduo
ó
éáã
Os cientistas sociais enfrentam frequentemente um dilema de difícil resolução. A nossa preocupação com 
a fiabilidade das descrições e explicações que damos da realidade social afasta-nos por vezes de tratar á
aquilo que nela  incerto e mutável, ou seja, aquilo que é verdadeiramente interessante. Devo desde já í
dizer que, infelizmente, não pertenço ao clube selecto daqueles que não têm dificuldades em combinar um í

impecvel rigor cientfico e metodológico com a capacidade para reflectirem sobre fenómenos onde áéãé
predominam precisamente a incerteza e a mutabilidade, como me parece ser este fenómeno da "crise da çóéê
justia". Logo, vou ter de sacrificar alguma coisa. Neste caso, vou sacrificar o rigor, na esperança - talvez ããêç
infundada - de que o carcter algo especulativo do que se segue possa suscitar alguma reflexão e servir ãçéãõ
mais tarde para uma abordagem um pouco mais sistemática do problema.
ãé

Tenho, no entanto, aquilo que me parece ser uma justificação razoável para seguir o caminho perigoso da 
especulao terica. O estudo do poder judicial de um ponto de vista politológico tem despertado ainda um 
interesse relativamente reduzido, mesmo junto da comunidade académica. É certo que a famosa operação áíêú
"Mos Limpas" encheu as primeiras páginas dos jornais em todo o Mundo e que outros países, em 
particular os da Europa do Sul, deram já indicações de que a compreensão do papel do poder judicial nas é
á
sociedades democrticas exige alguma espécie de contribuição sistemática da Sociologia e da Ciência 
polticas. Todavia, a expanso inegvel que a área de estudos a que se veio a chamar judicial politics ó
sofreu desde o princpio dos anos 90 acabou por incluir praticamente apenas os países do centro da õ
Europa ( 1 ), deixando de lado algumas questes e problemas que nos são específicos. Por outro lado, é ó
ê
verdade que a Sociologia do Direito tem sofrido um grande desenvolvimento no nosso país, fazendo com í
que saibamos incomparavelmente mais sobre a administração da justiça em Portugal hoje do que 
sabamos h quatro ou cinco anos ( 2 ). Contudo, de todos os caminhos possíveis para a investigação áà
nesta rea, um dos menos percorridos  o que diz respeito às relações entre o poder político e o poder 
çá
judicial ( 3 ). Se a investigao cientfica exige, entre outras coisas, um "património científico", na base do 
qual podemos testar hipteses existentes e construir hipóteses novas, a dimensão reduzida desse 
patrimnio nesta rea convida a que se combine o estudo empírico com alguma especulação teórica. ê
Porqu, j agora, esta insistncia na natureza poltica do tema "crise da justiça"? O objectivo geral deste àç

texto  responder a essa questo, tornando, espero, o significado da expressão um pouco mais claro, quer çéé
do ponto de vista daquilo que ela pode designar quer do ponto de vista das suas causas profundas. Para éí
isso, gostaria antes de mais de falar um pouco daquilo que, no nosso contexto, "crise da justiça" não í
significa. Em primeiro lugar, no me parece que ela seja apenas uma crise da administração da justiça. A ããó

consulta prudente de um qualquer dicionrio revelar que a palavra "crise" significa, entre outras coisas, ã
uma "alterao que sobrevm no decurso de uma doena" ( 4 ). Ora, no convém confundir a crise com a 
doena. A forma como o sistema judicial portugus responde  procura da resolução institucionalizada de 
conflitos padece de uma doena, neste caso crnica. Os sintomas so as dificuldades e desigualdades no áá
acesso aos tribunais e a morosidade do sistema judicial. E algumas das suas causas principais acabaram ã
çê
por ser, mais tarde ou mais cedo, correctamente identificadas: as transformações sociais, políticas e 
culturais que conduziram ao aumento quantitativo e  mudana qualitativa da litigiosidade; a ausência de ãá
inovaes legislativas e processuais capazes de responder a estas mudanas; e a falta de recursos 
5 í
materiais e humanos adequados, assim como as ineficincias da sua gesto ( ). Espero ainda 
demonstrar um pouco mais adiante que a nossa "crise da justia" no est - pelo contrário - dissociada íé
desta doena. Todavia, a nfase nos aspectos estruturais e sistmicos de quaisquer fenómenos pode ter 
consequncias algo perversas. Tal nfase negligencia, inevitavelmente, tendncias históricas de curta ê
durao, os agentes concretos que as protagonizam e os seus interesses. So estas tendncias, agentes 

e interesses que proporcionam os elos perdidos entre aquilo que  estrutural nas sociedades e os factos á
da vida pblica quotidiana que nos intrigam e nos afectam. E  a sua anlise que, ao contrrio do que 
sucede com aquilo que  sistmico e estrutural, poder eventualmente revelar os factores da crise cuja 
modificao e reforma esto, afinal, ainda ao alcance da vontade poltica.
ã
Em segundo lugar, tambm no gostaria de cair no extremo oposto, ou seja, de descrever esta "crise da 
í
justia" nas suas manifestaes mais episdicas ou mesmo anedticas. Para ser mais claro, no me 
parece que a crise se resuma aos conflitos e incidentes recentes entre polticos e magistrados, 
magistratura judicial e Ministrio Pblico, magistraturas e polcias ou entre os juzes e o Tribunal 
Constitucional. No resisto a assinalar que, para quem quiser regressar ao dicionrio,  de facto possvel










   1   2   3   4   5