Page 5 - Revista do Ministério Público Nº 79
P. 5
interesses e às mundividências próprias de cada magistrado ( 11 ). Por outro lado, esses estudos
demonstraram também que a imparcialidade do sistema judicial não depende apenas dos juízes, já que as
desigualdades estruturais na sociedade (a nível de status, poder ou recursos) reflectem-se inevitavelmente
no tratamento preferencial de determinados litigantes em desfavor de outros ( 12 ), mesmo em condições
(hipotéticas e contrafactuais) de total imparcialidade dos juízes.Contudo, há algo ainda mais perturbante do ãí
que estas descobertas acerca da "imparcialidade" dos tribunais. E digo mais perturbante porque, apesar de éçç
provavelmente inexistente, a imparcialidade não levanta dilemas teóricos: mais é sempre melhor ( 13 ). Ora, çãáãõà
o mesmo já não sucede no que respeita à insularidade política do poder judicial. Como afirma Christopher çõáóçé
Larkins, "é possível justificar a imposição de limites razoáveis à liberdade dos juízes e à jurisdição dos ééãç
ãõ
tribunais em nome de ideais democráticos importantes tais como o governo das maiorias e a soberania ãí
popular, restringindo efectivamente a insularidade política do poder judicial e o seu âmbito de ííõã
autoridade" ( 14 ). Outros vão ainda mais longe:
íçã
ç
ãçí
"Temos de optimizar a independência judicial em vez de a maximizar. (...) Porque um poder judicial ãáÉ
insulado em relao às instituições de governo sujeitas ao controlo popular (...) tem o poder de interferir õç
com aces ou decises dessas instituições, e pode assim frustrar a vontade popular. Um poder judicial ç
independente pode ser uma ameaça à democracia" ( 15 ).
ãéíãí
Esta , afinal, "a questo eterna" ( 16 ) da "legitimidade do poder judicial". Que critérios usamos para ç
determinar aquilo que "razoável" nos limites impostos à independência judicial por outros valores
democrticos? Como compatibilizamos o exercício do poder por parte dos magistrados com a sua íé
insulao em relao aos mecanismos de responsabilização política democrática? Como determinamos o êç
ãí
ponto "ptimo" de equilbrio entre todos esses valores e as regras e práticas institucionais que melhor os çíç
realizam? No conheo respostas definitivas para estas questões e não sei se será possível alguma vez âíãáêã
formul-las. Da, parece-me, decorre a profunda incerteza em torno do lugar do poder judicial nas ó
sociedades democrticas que se esconde por detrás do aparente consenso em torno da "independência
do poder judicial".
á
í
3. Da "crise latente" para a "crise manifesta"
áóí
Quando que esta incerteza em torno do lugar do poder judicial numa sociedade democrática - aquilo a áá
que gostaria de chamar a sua "crise latente" - se pode transformar numa crise manifesta? A primeira
situao tpica das novas democracias, cujas elites políticas se vêem frequentemente confrontadas com áãí
o facto dos juzes terem sido recrutados por regimes ditatoriais e socializados no interior de uma cultura í
judicial pouco interessada no alargamento dos direitos políticos. Neste caso, tornar os tribunais çóçã
independentes e politicamente irresponsveis poder não ter apenas como consequência a "frustração da õ
á
vontade popular" em certas circunstncias. Ela pode ter também como consequência a criação de reservas
de poder no interior do aparelho de Estado que iro ser usadas para a protecção de um determinado
interesse poltico sectorial no jogo democrtico, ou mesmo na defesa de interesses contrários à
competio e participao polticas ( 17 ).
ãçã
çá
No gostaria de me deter longamente na anlise dessas situaões, a não ser para dizer que elas me í
parecem assumir contornos menos graves em dois casos: quando os regimes ditatoriais que precederam íçã
estas democracias estavam menos interessados em penetrar politicamente os seus sistemas judiciais e á
quando essas novas democracias criam novas instituies - tribunais constitucionais - que dispõem, por çãê
um lado, de algum grau de consensualismo e responsividade poltica e, por outro, da capacidade para ã
revogar decises tomadas por juzes menos sensveis em relao aos valores da democracia e do
constitucionalismo. isto, em parte, que est por detrs do carcter relativamente mais pacífico da í
institucionalizao da independncia judicial nos pases da Europa do Sul do que na Europa de Leste ( 18 ). êç
Para alm disso, o tempo pode curar algumas das feridas. Nos sistemas de common law, onde os âã
ó
magistrados so total ou parcialmente designados pelo poder poltico, a alternncia político-partidária (e, í
nos sistemas federais, a pulverizao dos centros de poder) contribui decisivamente para, mais tarde ou ç
mais cedo, desfazer o monolitismo poltico e ideolgico das magistraturas. Nos sistemas de direito íã
continental, como o nosso, a prpria abertura da profisso e da carreira judiciárias trazida pela
democracia que normalmente se encarrega de diversificar a composio das magistraturas do ponto de ã
vista social e cultural, e logo, poltico e ideolgico (como os casos portugus ou espanhol demonstram
exemplarmente).
Contudo, no acabam aqui as nossas dificuldades em compatibilizar a insulao poltica do poder judicial
com a democracia. E isto porque h um segundo tipo de situao, caracterstico de algumas democracias
consolidadas, em que a independncia judicial se transforma numa fonte permanente de tensões e
manipulaes polticas, transformando a crise latente do poder judicial numa crise manifesta. Essas ã
situaes resultam da combinao entre dois processos: por um lado, a transformao da auto-regulação
do poder judicial num instrumento para a prossecuo sistemtica e incontrolada no dos interesses
sectoriais de qualquer fora poltica, mas sim dos interesses sectoriais dos prprios magistrados; e por
outro lado, a crescente judicializao da poltica, ou seja, "a expanso do domnio dos tribunais e dos
juzes custa dos polticos ou dos burocratas, ou seja, a transferncia de poderes de deciso dos