Page 31 - Revista do Ministério Público Nº 79
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supõe uma entrega e um recebimento lícitos. Efectivamente, se não há entrega, estaremos no domínio
possível do furto; se a entrega se faz com violência ou ameaças pôr-se-á o problema do roubo, se com
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artificio ou fraude, o da burla ou da fraude na venda" ( ). Éãã
Também a este propósito escrevia o Professor Beleza dos Santos que é na entrega que "aparece nítida a áãã
diferença entre o furto, a burla e o abuso de confiança.
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No primeiro, a coisa passa por subtracção, isto é, sem a vontade do detentor, para o poder do agente; nos úéé
dois ltimos, a coisa não é subtraída, mas entregue: é confiada ou posta à disposição do agente do crime, ã
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por vontade do detentor. ã
Por seu turno, a burla, na modalidade prevista pelo artigo 451o, distingue-se nitidamente do abuso de óú
confiana.
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Na primeira há uma fraude que determina a passagem da coisa do poder do detentor para o de outrem.
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Esta transmisso é consensual como diz Maggiore ( 13 ); não se opera por subtracção, como no furto, mas íó
por vontade do detentor, embora essa vontade seja determinada por erro provocado ou aproveitado çãç
fraudulentamente pelo agente do crime.
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H, portanto, aqui, um vício na aquisição do poder sobre o objecto do crime; esta aquisição é consensual, çãíãç
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mas fraudulenta. í
No abuso de confiana a aquisição, pelo agente, do seu poder sobre a coisa, é igualmente consensual, í
como na burla, mas no está viciada por fraude; pelo contrário, resulta de um título lícito.
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No no momento em que a coisa entra para o poder ou guarda do agente, isto é, no momento em que
este a recebe, em que ela Ihe é confiada, que existe o crime. Esta entrega, este recebimento, devem ó
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resultar de um ttulo lcito. ãçãéã
posteriormente que surge a infracção, no momento em que o agente recebeu a coisa por um título que o íãçã
impedia de se apropriar dela, pratica actos ilícitos de apropriação, a desencaminha ou dissipa.
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No importa que, para realizar esta apropriação, o agente use de fraude, por exemplo, empregando ú
qualquer meio ilcito para dar uma aparência lícita ao descaminho ou dissipação.
Esta fraude posterior entrega da coisa não tira ao crime o carácter de abuso de confiança, se a entrega ç
se tiver feito por ttulo legtimo.
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Tal fraude, ulteriormente empregada para dar uma justificação aparente à apropriação, é unicamente um á
processo de realizao desta e no um meio de obter a entrega do objecto do crime, como na burla" ( 14 ). á
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Desta forma, o Professor Beleza dos Santos cita Tolomei quando o mesmo afirma que se o artificio
fraudulento "for executado pelo agente depois da entrega da coisa e com o fim de se apropriar dela ou de ã
ocultar a apropriao j realizada, o crime ser unicamente o de abuso de confiança, porque o meio ilícito í
no empregado para obter a coisa, que j se encontra em poder do agente do crime, mas só í
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posteriormente utilizado, com o intuito de realizar a apropriação dela ou de ocultar uma apropriação já é
realizada" ( 15 ).
II. 2 - No Cdigo Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/1982, de 23 de Setembro
Com a entrada em vigor do Cdigo Penal aprovado pelo Decreto-Lei No 400/1982, de 23 de Setembro, o óãíó
crime de abuso de confiana passou a estar previsto e punido no respectivo artigo 300o, o qual no seu No 1 ç
dispunha que "quem ilegitimamente se apropriar de coisa mvel que lhe foi entregue por título não ã
translativo de propriedade", era punido com priso at 3 anos", sendo a pena de 1 a 8 anos de prisão
"quando a restituio ou reparao integral do prejuzo causado, sem dano ilegítimo de terceiro", se não ó
fizessem at ao momento de ser instaurado o procedimento criminal e o valor da coisa fosse
"consideravelmente elevado" - alnea a) do No 2 - ou quando o agente tivesse recebido a coisa "em
depsito imposto pela lei em razo de oficio, emprego, profisso ou na qualidade de tutor, curador ou á
depositrio judicial" - alnea b) do No 2 do mesmo artigo.
Tais penas eram agravadas at um tero nos seus limites mnimos e mximos se a coisa objecto de çê
apropriao pertencesse ao sector pblico ou cooperativo, nos termos do disposto no artigo 299o, aplicável çã
ao abuso de confiana por fora do No 3 do artigo 300o do Cdigo Penal de 1982, sendo reduzidas a ã
metade se o objecto da apropriao fosse restitudo ou tivesse lugar a reparao integral do prejuízo ç
causado, sem dano ilegtimo de terceiro, antes de ser instaurado o procedimento criminal - cfr. No 1 do ã
artigo 301o do Cdigo Penal de 1982 - no podendo a pena exceder seis meses de prisão quando se
tratasse de coisa "de pequeno valor", casos em que o tribunal podia mesmo isentar o agente da pena - cfr.
No 2 deste ltimo preceito legal.
Ainda de acordo com o disposto no No 3 do artigo 301o, a restituio ou reparao parcial eram tomadas
em conta "na respectiva proporo".
Como nota de realce deste regime importar destacar o facto de se ter passado a distinguir com clareza o
crime de abuso de confiana relativamente ao crime de furto, salientando-se, como faz Maia Gonçalves,
que "o texto legal foi manifestamente inspirado pela doutrina dos autores que tm procurado definir com
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exactido os limites deste crime" ( ), importando tambm salientar que a criminalizao apenas passou a
considerar os casos em que o agente se apropria, i.e., faz sua coisa mvel que lhe foi entregue por ttulo
no translativo da propriedade, e no os casos em que o agente descaminhasse ou dissipasse tal coisa.