Page 8 - Revista do Ministério Público Nº 79
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primeira linha das suas prioridades de acção e organização, causando ineficiências e irracionalidades no 
funcionamento da justiça e impedindo que se assegurem algumas das condições básicas da cidadania 
democrática, pelo menos no que respeita às relações entre os cidadãos e o sistema judicial.


4. Conclusão
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At que ponto serão as especulações teóricas anteriores úteis para a compreensão do caso português e ãçãê
da nossa "crise da justiça"? Em primeiro lugar, diria que esta é, antes de mais, uma questão a ser éçãá
çãêêêã
respondida pela investigação empírica. Essa investigação terá de dirigir-se necessariamente para objectos 
que, at agora, têm permanecido praticamente ignorados: as preferências e atitudes dos actores políticos ãçã
em relao à organização do poder judicial; a análise organizacional do aparelho burocrático judicial e suas à
consequncias para o desempenho do sistema; a composição social, cultural e ideológica das çãç
magistraturas; e as formas e intensidades da judicialização da política.
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Contudo, devo admitir que aquilo que disse anteriormente não decorre de mera dedução teórica. Na á
verdade, creio que, infelizmente, as tendências que apontei encaixam em grande medida na realidade do 
funcionamento do sistema judicial e das relações dos magistrados com o poder político em Portugal. A ççóáç
inflao da composião do Supremo Tribunal de Justiça e a rotinização da sua jurisprudência, o ãá
fechamento do corpo judicial à entrada de juristas de mérito, a ineficácia prática das inspecções judiciais e ç
éã
a prevalncia real do critrio da antiguidade no acesso aos tribunais superiores, fenómenos abstrusos íçãã
perante os quais o poder político se tem comportado com indiferença olímpica (para não dizer é
complacncia), so apenas algumas manifestações conhecidas da burocratização e da corporativização da ó
magistratura judicial. O frequente recurso aos tribunais para resolver controvérsias políticas, o áãç
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protagonismo pblico e poltico questionável do Procurador-Geral da República, as expectativas geradas çà
em torno da sua capacidade para se converter numa instância de controlo político do poder político e a õçí
frustrao - inevitvel - dessas expectativas são também manifestações conhecidas e perturbantes da í
nossa peculiar "judicializao da poltica". Do lado do poder político, é possível detectar três fases de íé
actuao. Primeiro, durante a consolidação da democracia, a busca da coexistência pacífica com os ã

interesses corporativos das magistraturas. Depois, com a súbita maioritarização do sistema político, àáú
assistimos  politizao do tema da independência judicial nos moldes simplistas de uma dicotomia í
maioria/oposio. Hoje, na nossa "crise da justiça", o poder político vem finalmente colher aquilo que é
semeou: a manifesta incapacidade para gerir tensões, interesses e ambições de protagonismo que antes ó
se alimentaram com cuidados extremosos. Mas como digo, e na ausência de estudos empíricos, estamos àã
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ainda a lidar com hipteses e intuies acerca das razões da actual "crise da justiça".
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Uma reflexo final: se a perspectiva que se adoptou aqui fizer algum sentido, então a discussão acerca da á
"crise da justia" ter obrigatoriamente de englobar algo mais do que um discurso sobre os recursos í
materiais da administrao da justia ou sobre a adequação instrumental de leis e dos códigos. Nem í
poder ficar-se pela anlise - importantssima - da cultura jurdica ou das variáveis estruturais profundas da 
sociedade portuguesa. Ela ter tambm de englobar um discurso científico sobre os actores políticos e 
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judiciais concretos e, especialmente, sobre os seus interesses. Compreende-se bem a incomodidade da éç
questo. O discurso sobre os interesses polticos e corporativos que se degladiam em torno da justiça tem éãá
sido frequentemente, ele prprio, um discurso interessado. Mas creio compreender também a razão 
porque se tem evitado sistematicamente a questo. Enquanto que o discurso acerca dos recursos 

materiais e legislativos reporta-se quilo que se pode mudar com demasiada facilidade, o discurso sobre éê
as causas estruturais da crise diz respeito quilo que est para alm da vontade dos agentes e das elites á
polticas, judiciais e sociais. Ou seja, enquanto um  voluntarista, o outro  desresponsabilizante. Todavia, 
os interesses existem. Eles so aquilo que, em grande medida, move os agentes envolvidos e gera 
resistncias a todas as mudanas que no sejam meramente cosmticas. Se a discussão sobre a crise da ã
á
justia servir para alguma coisa,  para desvendar esses interesses, compatibiliz-los onde for possível e, 
quando isso no puder ser feito, subordin-los queles que devem ser os interesses prevalecentes na 
administrao da justia: os interesses dos cidados.
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(*) Este artigo  uma verso revista e aumentada da comunicao ao painel "Diviso de poderes e o 
controlo democrtico do poder poltico" no colquio "A Democracia Portuguesa: Problemas e Desafios", í
Universidade Catlica Portuguesa, Instituto de Estudos Polticos, 7 de Maio de 1999. 
( 1 ) Cf., por exemplo, Kenneth M. Holland (org.), Judicial Activism in Comparative Perspective, Londres, 

MacMillan, 1991; Mary L. Volcansek (org.), Judicial Politics and Policy-Making in Comparative Perspective, 
Londres, Frank Cass, 1992; e C. Neal Tate e Torbjrn Vallinder (orgs.), The Global Expansion of Judicial 
Power, Nova Iorque, New York University Press, 1995.
( 2 ) A responsabilidade central nesse acrscimo de conhecimento ter de ser atribuda ao estudo 

monumental de Boaventura de Sousa Santos, Maria Manuel Leito Marques, Joo Pedroso e Pedro Lopes 
Ferreira, Os Tribunais nas Sociedades Contemporneas: O Caso Portugus, Porto, Afrontamento, 1996. 
( 3 ) Ilustrativo deste facto  o reduzido nmero de obras nessa rea citadas na excelente resenha da










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