Page 7 - Revista do Ministério Público Nº 79
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3.2. A judicialização da política
A expressão "judicialização da política" é usada hoje na discussão política quotidiana, e em particular nos ããà
meios de comunicação de massas, para designar o resultado de uma competição por espaço político e
protagonismo entre políticos e magistrados. Todavia, importa notar que o poder dos tribunais é pelo menos çíí
to concedido como conquistado. A atribuição de jurisdição formal aos tribunais em determinadas matérias õàãíé
ou a transferência de temas e debates políticos para a esfera judicial são, em grande medida, actos ççá
ãõç
decorrentes de vontade política, cujas motivações importa discutir.
ãçàãã
Uma dessas motivações é de natureza técnica. Como afirma Eli Salzberger, "as razões tradicionais para a ãçç
delegao de poderes legislativos [no poder judicial] (...) são a falta de tempo dos parlamentos para regular êãçã
tudo aquilo que deve ser regulado, especialmente desde a expansão do Estado-Providência e do ãúéí
intervencionismo estatal na segunda metade deste século; a complexidade técnica dos assuntos (...); e o íççã
ãõàç
maior grau de flexibilidade necessário para a aplicação de regras detalhadas" ( 28 ). Todavia, há também ãã
motivaes mais directamente políticas para a judicialização. A primeira está ligada à natureza da é
competio poltica democrática contemporânea, e em particular à predominância de partidos que estão çã
fundamentalmente interessados em maximizar o seu apoio eleitoral, como parecem ser os modernos éçé
íãí
partidos catch-all ( 29 ). Estes partidos estão menos interessados em mobilizar e fidelizar sectores restritos
do eleitorado do que em escapar à responsabilização pelas medidas impopulares que tomam ou úéçç
defendem, ou mesmo por aquelas medidas cujas repercussões no apoio eleitoral ou na disciplina partidária ãíççã
30 ãõç
so incertas ( ). Uma dessas formas de desresponsabilização é-nos já bastante familiar, e chama-se ããà
referendo. Mas no a nica. Os tribunais podem ser também convenientes "bodes expiatórios" de çç
decises tomadas em matrias que perturbam a estruturação tradicional do sistema partidário e geram ãçíõí
grande incerteza eleitoral, tais como, por exemplo, o aborto, a objecção de consciência, a liberdade ãáá
religiosa, a relao entre o poder central e os poderes infra-nacionais e os temas de Weltanschauung em çã
ííà
geral. Assim, a judicializao da poltica pode ser vista, em parte, como o fruto de uma delegação çç
voluntria de poder nos tribunais por parte das instituições políticas ( 31 ).
êããí
A natureza da moderna competio partidária, acompanhada pelas transformações nos mecanismos de çíé
comunicao e controlo polticos nas democracias modernas, alimenta ainda outras formas de delegação çõ
ãçã
de poder nos tribunais. Independentemente do "romantismo" inegavelmente implícito na noção do "declínio á
dos parlamentos", difcil negar a evidncia do carácter relativamente marginal que as assembleias é
legislativas tm hoje em relao aos governos, aos executivos partidários e aos aparelhos estatais no que ã
respeita aos poderes de deciso poltica, e em relação aos meios de comunicação de massas no que íãá
respeita s funes de controlo e comunicao poltica. A judicialização da política é, em grande medida, ç
çõ
filha desta marginalizao dos parlamentos ( 32 ). Primeiro, porque a conversão das divergências políticas õ
em conflitos de soma-zero entre "culpados" e "inocentes" é muito mais adequada à comunicação mediática óç
e ao tipo de competio eleitoral moderna (ligada no a programas, mas sim a carismas e reputações) do éã
que discusso minimamente racional dos temas em fruns institucionais. E segundo, porque aquela ãíéç
çõã
marginalizao dos parlamentos produz incentivos poderosos a que as oposições apoiem agora os
tribunais e as magistraturas como instrumentos de controlo político e contra-poder. Esse apoio dirige-se
quer em relao s magistraturas como um todo (defendendo os seus interesses corporativos e o aumento
dos seus poderes) quer em relao s figuras, faces e actuações consideradas oposicionistas em ãçáí
ã
relao ao poder do dia. Para as oposies, estas actuaes so duplamente úteis, não só porque çõ
colocam os governos em dificuldades polticas mas tambm porque são particularmente bem recebidas çê
pela opinio pblica, ao surgirem como uma espcie de compensao pelo declínio da responsabilização ãõ
poltica atravs das instituies tradicionais (parlamentos e partidos). Para os governos, as reacções í
possveis a esta "manipulao poltica" do poder judicial esto sujeitas a grandes constrangimentos, e os ó
ç
argumentos em favor da responsabilizao democrtica do poder judicial condenados ao insucesso. Por íã
um lado, por serem altamente impopulares, porque susceptveis de surgir perante a opinião pública como í
uma tentativa de escapar ao controlo democrtico do poder. E por outro lado, porque os governos são õ
tambm eles, como vimos, responsveis por outras formas de "manipulao poltica" do poder judicial, que
implicam, precisamente, a auto-regulao corporativa - e logo, a irresponsabilidade política - das
ç
magistraturas.
ã
Logo, quando observamos a evoluo e as motivaes por detrs da auto-regulao corporativa das
magistraturas e da judicializao da poltica, rapidamente conclumos que o lugar ocupado pelo poder
judicial em muitos regimes democrticos pode no resultar da tal "optimizao" da independência das
magistraturas que nos sugerida pelos bem intencionados toricos da democracia. Na verdade, por acção í
ou omisso de governos e oposies que procuram legitimar-se, simplificar a sua agenda poltica, escapar
responsabilizao poltica e usar o poder judicial como um substituto de outras formas de controlo ç
poltico, aquilo que se tem vindo produzir uma agudizao da crise do poder judicial. As vantagens da ã
auto-regulao corporativa - a sua capacidade para promover a coexistncia pacfica entre o poder judicial
e o poder poltico - perdem-se medida que o primeiro recebe atribuies e misses que o colocam cada
vez mais no cerne da vida poltica quotidiana, aumentando as tenses em torno da actuao dos
magistrados e convertendo a sua auto-regulao em irresponsabilidade poltica. Os inconvenientes, esses,
permanecem: um poder judicial ao qual se consente a colocao dos seus prprios interesses sectoriais na