Page 6 - Revista do Ministério Público Nº 79
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parlamentos, dos governos ou da burocracia para os tribunais" ( 19 ).
3.1. A corporativização das magistraturas: motivações e consequências
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A concessão de auto-regulação corporativa ao poder judicial é uma tendência crescente nas democracias
modernas. Não só na Europa do Sul, mas também na insuspeita e "jacobina" França ( 20 ) e na Europa de
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Leste ( 21 ), o apagamento das funções dos ministros da justiça e a atribuição da gestão do aparelho ççç
judicial a "conselhos superiores" dominados por magistrados eleitos pelos seus pares e organizados em çããíãã
"associaões sindicais" - de crescente carácter transnacional - são os sintomas mais evidentes desta í
tendncia.
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Porque se generaliza esta auto-regulação corporativa? Tal como sucede com todas as formas de neo- çããã
corporativismo, ela resulta de uma troca implícita, neste caso, entre o poder judicial e o poder político. Do ã
ponto de vista dos governos, a concessão de auto-regulação corporativa aos magistrados pode ser vista õ
como uma resposta imediata a défices de governabilidade e de legitimidade dos sistemas políticos. Por um çí
lado, essa concessão facilita a "privatização" da gestão dos recursos e do pessoal judicial, contribuindo ãâí
çõãççêçãç
assim para a reduo da complexidade das agendas políticas dos governos ( 22 ). Por outro lado, ela pode íããç
servir uma funo de relegitimação do sistema político, particularmente em contextos onde o descrédito da íã
classe poltica, a debilidade institucional dos parlamentos, a concentração do poder nos executivos e nas
burocracias e a distncia entre os partidos e os eleitores são particularmente acentuados. Nestes casos, a çãé
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concesso de autonomia a instituições "não-maioritárias" toma partido da legitimidade técnica e científica ãç
da funo judicial e da ideologia que associa a independência judicial à democracia para compensar êã
dfices de legitimidade decorrentes da insatisfação com o funcionamento dos mecanismos de participação íêà
e representao poltica existentes.
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J do ponto de vista das magistraturas, a satisfação dos interesses materiais e simbólicos dos seus çã
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membros (remuneraes, benefcios, estatuto e prestígio social) pelo Estado é tanto mais provável quanto ç
maior for a sua coeso e a coerncia da sua acção. Coesão e coerência dependem, por sua vez, de três çãà
coisas: auto-governo, afastando os faccionismos que resultariam inevitavelmente da intervenção de çã
agentes exteriores (partidos, interesses sociais) no funcionamento do aparelho judicial; burocratização, õêç
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hierarquizao e formalismo nas interaces internas; e distribuição interna de benefícios, não só de
benefcios colectivos obtidos junto do Estado mas também de benefícios específicos e selectivos ã
distribudos pelo topo da organizao aos seus membros. Mais tarde ou mais cedo, auto-regulação, íêí
burocratizao e distribuio interna de benefcios estão destinados a tornarem-se objectivos em si
mesmos, dada a sua instrumentalidade para a eficácia da magistratura enquanto "grupo de interesses áçé
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institucional" ( 23 ).
Se, como vimos anteriormente, a independncia do poder judicial promete tensões e incertezas na relação õ
entre polticos e magistrados, o reconhecimento mtuo das vantagens e interesses associados à auto- áã
regulao corporativa pode mitigar temporariamente essas tensões, promovendo a coexistência pacífica çã
entre o poder poltico e o poder judicial ( 24 ). Todavia, antes ainda de tratarmos a forma como a
"judicializao da poltica" coloca esta coexistncia em crise, importa meditar sobre os custos que
decorrem do corporativismo judicial. Primeiro, estes modos de auto-regulação afastam desde logo uma
outra dimenso da independncia judicial no mencionada até aqui, a independência interna dos
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magistrados em relao aos seus pares, com o que isso implica em termos de autonomia individual e ã
diversidade (
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25 ). Segundo, a auto-regulao do aparelho judicial torna os magistrados co-responsáveis por um vasto
nmero de decises a nvel de poltica judiciria e criminal sem permitir que eles possam ser efectivamente
co-responsabilizados democraticamente por essas decises. Terceiro, a distribuição de benefícios internos
pode resultar na iseno de uma avaliao sistemtica da competncia e do mérito no interior do corpo á
judicial, assim como em outros benefcios selectivos que podem resultar em ineficiências e irracionalidades
globais na organizao e no funcionamento dos tribunais. E finalmente, a burocratização e á
corporativizao do poder judicial aumentam a probabilidade de que o sistema permaneça imunizado em á
relao a certos tipos de litigao "no-rotineira", precisamente aquela que permitiria uma expansão e uma
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tutela judicial de direitos e garantias ( ).
Esta ltima consequncia , talvez, a mais grave e perturbante de todas. Vimos j como a insularidade çç
poltica dos tribunais pode levantar dilemas de difcil resoluo, ligados sua irresponsabilidade política e à ãã
frustrao da vontade das maiorias. Ora, uma das formas possveis de resolver esses dilemas seria
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atravs de uma fonte alternativa de legitimidade democrtica de um poder judicial independente ( ): a
sua capacidade para responder s aspiraes dos cidados - em particular daqueles que se encontram
estruturalmente desfavorecidos na relao com os tribunais -, para alargar os seus direitos na resposta a
novos tipos de litigao e para assegurar a proteco efectiva, sustentada e sistemtica desses direitos.
Todavia, aquilo que temos de comear ponderar a possibilidade de que a auto-regulao corporativa ç
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das magistraturas - com o que pode implicar em termos de ineficincia, irracionalidade, rotinizao,
resistncia mudana, burocratizao e opacidade do funcionamento do aparelho judicial - constitua
precisamente um dos maiores impedimentos a esse tipo de legitimao democrtica da funo judicial.