Jurisprudência e requisitos materiais do contrato de trabalho em comissão de serviço – diferentes registos tonais

Maria Irene Gomes
Doutoranda em Direito
Universidade do Minho


SUMÁRIO: 1. Notas de abertura; 2. Acórdãos jurisprudenciais em staccato a propósito dos requisitos materiais; 3. Acórdãos jurisprudenciais em staccato a propósito da inobservância dos requisitos materiais; 3.1. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de janeiro de 2012 – uma nova partitura?


1. Notas de abertura

I. Importa referir, em primeiro lugar, que, nos termos do art. 161.º do Código do Trabalho (CT)[1], «pode ser exercido, em comissão de serviço, cargo de administração ou equivalente, de direcção ou chefia directamente dependente da administração ou de directorgeral ou equivalente, funções de secretariado pessoal de titular de qualquer desses cargos, ou ainda, desde que instrumento de regulamentação colectiva de trabalho o preveja, funções cuja natureza também suponha especial relação de confiança em relação a titular daqueles cargos e funções de chefia»[2].

Da enumeração legal prevista na 1.ª parte do art. 161.º do CT resultam dois grupos de destinatários diferentes: os chamados trabalhadores dirigentes (identificados pela lei através das expressões «cargo de administração ou equivalente, de direcção ou chefia directamente dependente da administração ou de directorgeral ou equivalente») e os trabalhadores que assessoram directamente os trabalhadores dirigentes (identificados pela lei enquanto aqueles que exercem «funções de secretariado pessoal de titular de qualquer desses cargos»); já a 2.ª parte da norma possibilita ainda um terceiro grupo de destinatários, a prever por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, constituído pelos trabalhadores que realizam funções cuja natureza também suponha especial relação de confiança em relação a titular daqueles cargos dirigentes e funções de chefia[3].

II. Por outro lado, importa ainda dizer que a lei não prevê expressamente qualquer consequência jurídica perante a inobservância do art. 161.º do CT [4], ou seja, perante a inobservância dos requisitos materiais ou substanciais exigidos para a legítima constituição do contrato de trabalho em comissão de serviço.

III. Em face do exposto, a interpretação do referido preceito legal e a determinação das consequências da sua inobservância são, assim, decisivas para delimitar o âmbito objetivo/subjetivo da comissão de serviço e, consequentemente, para determinar a aplicação do seu particular regime, revestindo as questões um relevo práticojurídico fundamental.

O presente texto pretende, precisamente, tecer alguns comentários sobre o papel que a jurisprudência tem tomado a propósito da densificação dos requisitos materiais ou substanciais do contrato de trabalho em comissão de serviço (ou seja, da determinação das funções e dos cargos que podem ser objeto desta modalidade contratual) e das consequências da inobservância dos referidos requisitos.

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[1] O preceito corresponde, com alterações, ao art. 244.º do CT de 2003 e, anteriormente, ao art. 1.º, n.º 1, do DL n.º 404/91, de 16 de outubro. Notese que, em 2009, o legislador passou a regulamentar a comissão de serviço (arts. 161 a 164.º) no âmbito de uma nova secção, a Secção IX, do Capítulo I, Disposições gerais, do Título II, Contrato do trabalho, do Livro I – Parte geral, do CT de 2009, que designou «Modalidades de contrato de trabalho». O CT de 2009 (identificado doravante pela sigla CT) foi aprovado pela L n.º 7/2009, de 12 de fevereiro. O diploma foi retificado em 18 de março pela Declaração de Retificação da AR n.º 21/2009, de 18 de março, e regulamentado pela L n.º 105/2009, de 14 de setembro, tendo sido alterado pelas Leis n.os 53/2011, de 14 de outubro, 23/2012, de 25 de junho, e 47/2012, de 29 de agosto. Os preceitos citados, exceto indicação em contrário, referemse ao CT de 2009 (e suas posteriores alterações).

[2] A referência final da norma – «funções de chefia» – foi aditada pela L n.º 23/2012, de 25 de junho.

[3] No mesmo sentido, João Leal Amado, Contrato de trabalho, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 146.

[4] E, antes dele, do art. 1.º do DL n.º 404/91, de 16 de outubro, e, depois, do art. 244.º do CT de 2003.