Page 13 - Revista do Ministério Público Nº 49
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A violação dos direitos fundamentais dos cidadãos comuns por titulares de órgãos de soberania constitui
em responsabilidade não só aqueles que concretamente a praticam, mas é também fonte de
responsabilidade civil para o próprio Estado.
É neste contexto da defesa da sociedade civil contra os abusos da sociedade política, contra os excessos í
ilcitos dos agentes da autoridade que o poder judicial exerce um papel fundamental, na medida em que óó
lhe compete assegurar o respeito pelos princípios do Estado de direito. Estado de direito que vai além da
observância do quadro estrito das leis formais escritas, englobando os princípios e os valores ãí
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fundamentais expressos nos direitos, liberdades e garantias consagrados nas Constituições e em textos do âçã
prprio direito supranacional, como é, por exemplo, o caso da Declaração Universal dos Direitos do çá
Homem.
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A soberania popular não se esgota nas instituições cuja legitimidade se apoia no sufrágio universal.
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A atitude característica do poder judicial deriva da sua independência, da circunstância de que o juiz não çá
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tem que se preocupar com o que possa ser o desejo (ou a vontade) de uma qualquer autoridade ãã
relativamente a um caso concreto, devendo antes cuidar das razões legítimas que as pessoas singulares e ãêíí
os grupos que integram a sociedade civil têm a expectativa fundada de ver tuteladas.
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O dever do juiz no consiste em impor a vontade de uma qualquer autoridade, mas antes em, de acordo
com a sua conscincia, «assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, ç
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reprimir a violao da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados» -
artigo 205o, No 2, da Constituição.
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3. A limitao jurdica do poder político
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3.1 No mbito das consideraes acerca da problemática que põe em confronto a «sociedade política» e a éçãí
«sociedade civil», creio que se justificará uma breve incursão no tema da legitimidade dos governantes. íã
Deixando de lado a situao, bem diversa, dos governantes de facto, o que nos levaria à análise da í
«legitimao» pela fora (e/ou pelo decurso do tempo do exercício do poder) por parte dos usurpadores,
limitemos a abordagem situao dos governantes de direito, confinando-nos a breves notas acerca da á
legitimidade (de ttulo e de exerccio do Poder) por parte dos governantes designados segundo a
legalidade em vigor num determinado ordenamento.
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Na senda das velhas concepes perfilhadas pelas monarquias teocráticas da Antiguidade, fizeram curso
na Europa Crist da Alta Idade Mdia as doutrinas acerca do direito divino da origem do poder, quer na áí
formulao do direito divino sobrenatural (ou da legitimidade carismática do soberano), quer, com maior á
adeso, no modelo do direito divino providencial.
Enquanto para as primeiras o poder tinha uma origem sobrenatural (não se esqueça que «carisma», em
teologia, quer dizer que o poder um dom divino conferido a certas pessoas), as doutrinas do direito divino
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providencial sustentavam, no essencial, que o poder vem de Deus para a sociedade, a qual, depois, o óç
confia aos governantes: «omnis potestas a Deo per populum».
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Compreende-se que esta concepo, ao admitir que o poder é uma atribuição da sociedade (embora
confiada por Deus), que dela pode dispor como entender melhor, com respeito pela «ordem providencial», í
facilitou o caminho para a aceitao das doutrinas democrticas, substituindo ao «direito divino dos reis» o àí
«direito divino dos povos».
3.2 Foi assim que se desenvolveu, ainda na Idade Mdia, a doutrina segundo a qual a fonte do poder ã
temporal residia na vontade do povo. Lembrem-se, a propsito, as Cortes portuguesas de 1385.
Nesta concepo, o fundamento jurdico da autoridade poltica assentava num contrato de submissão í
(«pactum subjectionis»), cujos efeitos podiam, alis, divergir, conforme as correntes e os autores. Assim,
enquanto para uns, o povo podia alienar o poder para a pessoa do monarca («princeps major populo»),
para outros, o poder popular era inalienvel, limitando-se o povo a conceder ao príncipe o uso (ou o
exerccio) do poder, mas reservando para si a raiz da autoridade («populus major príncipe»).
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A partir da doutrina do «poder popular inalienvel» viria a brotar a justificaão do tiranicídio, entendida
como o direito do povo, enquanto fonte e fundamento do poder, de afastar o «monarca» que, reiterada e
gravemente, deixasse de fazer o uso devido do poder que lhe tinha sido confiado.
Recordar-se- que a defesa jurdica da legitimidade de D. Joo IV, feita pelo «homem de leis»
FRANCISCO VELASCO DE GOUVEIA, assentou justamente no princpio de que «podem os reinos e os
povos privar aos reis intrusos e tiranos...».
3.3 Valer a pena recordar as traves mestras da concepo do eminente tratadista (jesuíta espanhol da
primeira parte do Sculo XVII) FRANCISCO SUAREZ.
Segundo o clebre autor de «De Legibus», o poder pertence sociedade ordenada, derivando de Deus,
como autor da Natureza. Mas a sociedade poltica pode, por consentimento geral, privar-se do poder que ãé
nela reside e transferi-lo para outrem. A legitimidade do exerccio do poder no deriva, assim, de direitos
de sucesso hereditria, mas sim da delegao que a comunidade faz (do Poder) ao fundador da dinastia.
S que, para SUAREZ, uma vez transferido o Poder, o Rei fica sendo superior ao Reino. Ento, este só
poder privar o Rei do poder, se ele se transformar em tirano (teoria da «justa guerra»).
3.4 Sabe-se como, depois de ROUSSEAU ter defendido a tese segundo a qual a vontade geral uma pura
resultante da vontade da maioria, recusando as frmulas da democracia representativa, porque