Page 104 - Revista do Ministério Público Nº 64
P. 104
Revista: No 64 - 4o trimestre de 1995
Autor: Guy de Maupassant
Capítulo: Vária
Éàé
Título: C) Antologia - Tribunais rústicos
ááê
Pgina: 197
êÀã
ã
C) Antologia
ãã
úá
Tribunais rsticos
áé
ç
A sala da justia de paz de Gorgeville está cheia de camponeses, que esperam, imóveis ao longo das ú
paredes, a abertura da sessão.
á
H grandes e pequenos, gordos e magros, com o ar de talhados em cepa de macieiras. Pousaram no chão éá
os cestos e ficaram serenos, silenciosos, preocupados com as suas questões. Trouxeram com eles o íê
cheiro a estbulos e a suor, a leite azedo e a estume. Moscas zumbem pela sala. Ouvem-se, pela porta ã
aberta, os galos cantar.
ç
Em cima de uma espcie de estrado está disposta uma mesa comprida coberta com uma toalha verde. Um é
óó
velho enrugado escreve, sentado na extremidade esquerda. Um guarda, direito na cadeira, olha para o ar,
na outra extremidade. E na parede nua, um grande Cristo de madeira, torcido numa atitude dolorosa, çá
parece oferecer ainda o seu eterno sofrimento pela causa destes labregos a cheirar a animais.
É
O senhor juiz de paz finalmente entra. É barrigudo, vermelhusco, e sacode, no andamento rápido de
homem apressado, o seu traje negro de magistrado: senta-se, pousa o gorro na mesa e olha para a çã
assistncia com um ar de profundo desprezo. ã
um letrado de provncia, um dos que traduzem Horácio, comprazem-se com os versos de Voltaire e ãé
sabem de cor Vert-Vert, assim como as poesias licenciosas de Parny.
í
Pronuncia:
«Vamos, sr. Potel, chame as partes».
Depois, sorridente, murmura:
«Quidquid tentabam diccre versus erat».
O escrivo, levantando a cabea calva, gagueja numa voz ininteligível: «A sra. Victoire Bascule contra íê
Isidore Paturon».
Uma grande mulher avana, uma senhora da provncia, uma dama de capital de distrito, com um chapéu éç
s fitas, uma corrente de relgio em festo no ventre, anis nos dedos e brincos brilhantes como candeias ê
acesas.
O juiz de paz sada-a com um olhar de conhecedor em que transparece um ar de troça, e diz:
ã
«Sra. Bascule, apresente a sua queixa.»
é
A parte contrria est ao lado. constituda por trs pessoas. No meio, um jovem camponês de vinte e
cinco anos, bolachudo como uma ma e vermelho como uma papoila. À sua direita, a mulher, muito nova,
magra, baixa, semelhante a uma garnis, com uma cabea estreita e chata, coberta, como uma crista, por
uma touca cor de rosa. Tem os olhos redondos, espantados e colricos, olhando de lado como os das
aves. esquerda do rapaz est o pai, um velho homem curvado cujo corpo torcido desaparece dentro da
camisa engomada, como debaixo de um sino.
àã
A sra. Bascule explica-se:
ú
«Sr. Juiz de paz, h quinze anos que recolhi este rapaz. Eduquei-o e amei-o como uma mãe, fiz tudo por
ele, fiz dele um homem. Ele tinha-me prometido, tinha-me jurado que nunca me deixava, e fizemos uma ç
escritura mediante a qual lhe dei uma propriedade, a minha terra de Bec-de-Mortin, que vale mais de seis
mil. Ora, aparece esta coisinha que no vale nada, esta ranhosa...
O JUIZ DE PAZ - Modere-se, sra. Bascule.
SRA. BASCULE - Uma garota... uma garota... quero eu dizer... deu-lhe a volta cabea, fez-lhe não sei o
qu, no, no sei o qu... e ele vai casar-se com ela, este parvo, este grande estpido, e leva-lhe a minha á
propriedade, a minha propriedade de Bec-de-Mortin... Ah! mas no, ah! mas no... Tenho um papel, está
aqui... Tem de me devolver a minha propriedade, nesse caso. Fizemos uma escritura no notrio para a
propriedade e uma escritura particular para a amizade. Uma vale tanto como a outra. A cada um o que lhe
devido, no verdade?
Ela apresenta ao juiz de paz um papel timbrado.
ISIDORE PATURON - No verdade.
O JUIZ DE PAZ - Cale-se. S fala quando for a sua vez. (L).

