Page 18 - Revista do Ministério Público Nº 79
P. 18
Revista:
No 79 - 3o trimestre de 1999
Autor:
João Conde Correia
(Procurador-Adjunto)
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Capítulo:
áEstudos
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Título:
Qual o significado de abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações
(artigo 32o, No 8, 2a parte da Constituição da República Portuguesa)? áéó
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Qual o significado de abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas çàã
telecomunicações (artigo 32o, No 8, 2a parte da Constituição da República Portuguesa)?
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O moderno processo penal, de estrutura acusatória, criação do Estado de Direito Democrático, tem como êçã
fins: realizar a justiça, descobrir a verdade material, proteger os direitos fundamentais das pessoas e õ
restabelecer a paz jurídica ( 1 ). ç
Nestas finalidades antagónicas revela-se o conflito Homem/Estado, na medida em que a optimização de íúç
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uma delas pode aniquilar, por completo, uma ou algumas das restantes. Assim, a máxima protecção dos
direitos fundamentais colocaria barreiras intransponíveis à descoberta da verdade e, em consequência, à
realizao da justia e a busca da verdade a todo o custo eliminaria os mais elementares direitos, ó
conduzindo a uma mistificação da justiça. Este conflito revela-se, em toda a sua amplitude, de forma éçãá
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exponencial, no domnio dos meios de prova e de obtenção da prova ( 2 ). Com efeito, o interesse punitivo á
do Estado e a pliade de mtodos, tendentes a determinar a existência de um facto ilícito, a punibilidade éé
do seu autor e a determinao da pena ou medida de segurança aplicáveis, dada a natureza das coisas, ç
podem afrontar, de forma grave e irreversível, os direitos fundamentais inerentes a um ser livre e digno ã
( 3 ).
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Ciente desta problemtica, a Constituião da República Portuguesa prescreve que «são nulas todas as â
provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas
telecomunicaes», conformando desta forma a concreta regulamentação deste conflito ( 4 ). áí
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A Constituio circunscreve, assim, o mbito de protecção daqueles direitos e remete para o legislador ã
ordinrio a tarefa de definir as reas de intervenção não abusivas, logradas pela concordância prática entre
aqueles direitos individuais e o interesse punitivo do Estado ( 5 ).
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Existe, pois, um «campo constitucionalmente demarcado e apesar de tudo significativamente amplo, no é
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interior do qual assiste ao legislador ordinrio a competência para pôr de pé um regime processual penal õê
assente em solues de sobreposio dos valores ou fins servidos pelo processo penal aos bens jurídicos àáé
correspondentes aos direitos fundamentais relativos privacidade, imagem, palavra, correspondência e
telecomunicaes. Campo que tem outrossim o significado de ditar, sem mais, a proibição constitucional ú
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de provas que o transcendam no sentido da afronta aos direitos fundamentais. E, nessa medida, de
inquinar em termos de irremedivel inconstitucionalidade as pertinentes leis ordinárias» ( 6 ).
O direito processual penal, «um dos ramos do direitos mais fortemente ideologizados» ( 7 ) é, pois, ó
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geneticamente, «verdadeiro direito constitucional aplicado» ( ).
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A dignidade da pessoa humana uma das bases da Repblica Portuguesa, enquanto fundamento e limite ç
do Estado de Direito Democrtico ( 9 ). No entanto, para alm desta tutela genérica, ampla e antecipada, a
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Constituio protege, individualmente, as manifestaes mais importantes da personalidade, consagrando- çç
as como verdadeiros e autnomos direitos fundamentais. Estes direitos foram-se autonomizando ao longo çã
dos tempos, emergindo da luta contra o Estado, logrando por fim obter consagração como autênticos ã
direitos fundamentais. Entre eles encontram-se a reserva da intimidade da vida privada e familiar, a çç
inviolabilidade do domicilio e o sigilo da correspondncia e dos outros meios de comunicação privada, ãõ
enquanto direitos pessoais e fundamentais, com eficcia imediata e fora vinculativa para as entidades
pblicas e privadas (cfr. artigo 26o, No 1, artigo 34o e artigo 18o da Constituio da República Portuguesa) e íé
cuja tutela assume, hoje, particular importncia, dada a proliferao das formas de intromissão, em
consequncia do grande desenvolvimento tecnolgico ( 10 ).
O direito reserva da intimidade da vida privada e familiar est consagrado no artigo 26o, No 1, da à
Constituio da Repblica Portuguesa, mas tambm em termos internacionais, designadamente no artigo é
12o da Declarao Universal dos Direitos do Homem e no artigo 8o da Conveno Europeia dos Direitos do
Homem. Por outro lado, tambm ao nvel interno infra constitucional a vida privada logrou obter
consagrao legal. Desde logo, no captulo VII, do ttulo II, do Cdigo Penal, cuja epgrafe , precisamente,
«dos crime contra a reserva da vida privada». Depois, no artigo 80o do Cdigo Civil ( 11 ).
No fcil definir os contornos deste direito ( 12 ). Canotilho, J. Gomes/Moreira, Vital ( 13 ), de forma
tautolgica, afirmam que consiste fundamentalmente em «impedir o acesso de estranhos a informações
sobre a vida privada e familiar e o direito a que ningum divulgue as informaes que tenha sobre a vida ã
privada ou familiar de outrem». Esta definio tem a virtude de revelar um dos interesses que esto
subjacentes proteco da reserva da intimidade da vida privada e familiar, que , precisamente, obstar
ou, pelo menos, supervisionar o acesso ou o conhecimento de informao pertinente vida privada ou